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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Língua de trapo
"O LIMITE de sua linguagem é o limite de seu
mundo". Sustentando
essa proposição, a linguagem é
concebida como forma do conhecimento, e a palavra adquire sentido
na dinâmica de seu uso. Por isso
mesmo, é constitutiva de atos, em
processos que, acidentais, se conjugam e orientam-se na trama social e em suas regras. Discursos e
ações, estranhos a toda teleologia
ou transcendência, têm sua gênese
e configuração na finitude terrena,
no campo da língua quotidiana,
preponderante nessa linha de reflexão. Essa desencantada atitude
vincula, sem apelo, o que se mostra
na linguagem e o mundo em que
ela se enquadra.
Essa lembrança ajuda a captar o
núcleo dos palavrões proferidos
em entrevista publicada na Folha,
sem cair no juízo edificante. Por
certo, o registro vil é sublime nos
mestres da sátira: Aristófanes não
recua diante do universal gesto infamante do dedo médio; Petrarca
invectiva os médicos fadados a
cheirar excrementos; Rabelais
chama os confessores de masca-fezes. Aí, o xingatório humilhante e
hilário aniquila o inimigo e seduz o
leitor ou ouvinte. O lance enérgico
e jocoso junta-se ao apuro literário
(retórico e político), regulando o
uso e enriquecendo o vilipêndio
que, recomposto, ganha corpo e
força.
Qual o alvo das imagens e ditos
grosseiros na atual fala política?
Aproximar-se da língua popular?
Ledo engano. Se o palavrão é admitido na intimidade, entre pares, é
vetado extramuros, mormente nos
grupos rurais: uma etiqueta precisa e cerimoniosa rege sua hierarquia e ritos de comunicação. Ou visa "escandalizar o burguês"? Bala
perdida. O pudor se esvaiu nessa
classe.
À diferença da zombaria entretecida à gravidade, na literatura, o
palavrão, hoje, entre alguns, tornou-se trivial. Da mera incontinência resulta a analogia cometida
por Jaques Wagner: seus partidários fazem "cagadas" assim como
jornalistas produzem "merdas",
deixando imunes partido e jornal.
Quais os parâmetros dessas figuras? Nelas, é "sonho" excessivo
chegar à moralidade pública "só
com gente correta". Tal assertiva
-a probidade política se alcança
com pessoas desonestas- soa paradoxal. Mas não: o absurdo absoluto corre paralelo à perda completa de referência normativa. Ao passo que se generaliza, o malfeito (o
"caixa dois") se legitima. Esse ultraje dá-se num discurso disparatado, sem forma lógica ou sentido
ético, afrontoso ao decoro do cargo
que o eleito irá ocupar. Essa a linguagem de Jaques Wagner; esse o
seu mundo. Ambos partilhados pelo candidato-presidente, bem à
vontade com palavras chulas
("porra", a última), registradas na
imprensa.
Que será da cultura nesse ambiente?
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
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