São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 2006

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Língua de trapo

"O LIMITE de sua linguagem é o limite de seu mundo". Sustentando essa proposição, a linguagem é concebida como forma do conhecimento, e a palavra adquire sentido na dinâmica de seu uso. Por isso mesmo, é constitutiva de atos, em processos que, acidentais, se conjugam e orientam-se na trama social e em suas regras. Discursos e ações, estranhos a toda teleologia ou transcendência, têm sua gênese e configuração na finitude terrena, no campo da língua quotidiana, preponderante nessa linha de reflexão. Essa desencantada atitude vincula, sem apelo, o que se mostra na linguagem e o mundo em que ela se enquadra.
Essa lembrança ajuda a captar o núcleo dos palavrões proferidos em entrevista publicada na Folha, sem cair no juízo edificante. Por certo, o registro vil é sublime nos mestres da sátira: Aristófanes não recua diante do universal gesto infamante do dedo médio; Petrarca invectiva os médicos fadados a cheirar excrementos; Rabelais chama os confessores de masca-fezes. Aí, o xingatório humilhante e hilário aniquila o inimigo e seduz o leitor ou ouvinte. O lance enérgico e jocoso junta-se ao apuro literário (retórico e político), regulando o uso e enriquecendo o vilipêndio que, recomposto, ganha corpo e força.
Qual o alvo das imagens e ditos grosseiros na atual fala política? Aproximar-se da língua popular?
Ledo engano. Se o palavrão é admitido na intimidade, entre pares, é vetado extramuros, mormente nos grupos rurais: uma etiqueta precisa e cerimoniosa rege sua hierarquia e ritos de comunicação. Ou visa "escandalizar o burguês"? Bala perdida. O pudor se esvaiu nessa classe.
À diferença da zombaria entretecida à gravidade, na literatura, o palavrão, hoje, entre alguns, tornou-se trivial. Da mera incontinência resulta a analogia cometida por Jaques Wagner: seus partidários fazem "cagadas" assim como jornalistas produzem "merdas", deixando imunes partido e jornal.
Quais os parâmetros dessas figuras? Nelas, é "sonho" excessivo chegar à moralidade pública "só com gente correta". Tal assertiva -a probidade política se alcança com pessoas desonestas- soa paradoxal. Mas não: o absurdo absoluto corre paralelo à perda completa de referência normativa. Ao passo que se generaliza, o malfeito (o "caixa dois") se legitima. Esse ultraje dá-se num discurso disparatado, sem forma lógica ou sentido ético, afrontoso ao decoro do cargo que o eleito irá ocupar. Essa a linguagem de Jaques Wagner; esse o seu mundo. Ambos partilhados pelo candidato-presidente, bem à vontade com palavras chulas ("porra", a última), registradas na imprensa.
Que será da cultura nesse ambiente?


MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às quintas-feiras nesta coluna.

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