São Paulo, terça-feira, 12 de outubro de 2010

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MARCELO LEITE

20% verde

A pantomima de debate que a campanha eleitoral na televisão e no rádio serviu aos eleitores, no primeiro turno, desandou de vez com com a ressurreição enigmática da questão do aborto.
A julgar pelo debate de domingo e pela ressurreição das grávidas de Lula no programa de José Serra, a palhaçada veio para ficar.
Esse retrocesso da discussão política é lamentável. De repente, parece que o único problema do país, ou o mais importante, é o aborto. Uma agenda retrógrada, se não uma cortina de fumaça nos olhos do eleitorado.
O pior dessa regressão é a tentativa de atribuir ao atraso a única coisa nova que surgiu nos programas encharcados de marketing: a campanha de Marina Silva, acomodada às pressas no maleável Partido Verde.
Sua alta nas pesquisas de intenção de voto e depois a confirmação da "onda verde" com 20 milhões de sufrágios sofreram uma desvalorização. Seriam, juram muitos, produto da migração de votos de evangélicos insatisfeitos com as supostas opiniões de Dilma Rousseff a respeito da interrupção da gravidez.
Não cabe, na tacanha imaginação política que domina as análises, a hipótese de que a votação obtida por Marina Silva tenha sido por seu programa, suas ideias ou seu desempenho nos debates engessados da TV. Que terceira via, que nada. É o velho atraso nacional dando as caras, mais uma vez.
Se Marina Silva é da Assembleia de Deus, e se não renegou suas opiniões conservadoras sobre aborto, drogas, homossexualismo etc., então os votos que empalmou só podem ter origem em mentes simplórias, que recuam em horror diante da hipótese de um genocídio abortivo.
É um silogismo mais amalucado que o normal em um país avesso à lógica. O tipo do chute que, numa esfera pública mais desenvolvida, ninguém se arriscaria a dar sem apoio em evidências. Onde estão?
O mesmo tipo de desqualificação se opera com os votos dados ao PT. Tudo não passaria de retribuição pelos caraminguás recebidos com a Bolsa Família.
Mesmo que a motivação dos 47 milhões seja puramente econômica, decorrente da alta no emprego e na formalização do trabalho, ou do aumento do crédito e do consumo, quem são os analistas para dizer que isso é irracional, atrasado ou despolitizado? Quem é estúpido?
Tem gente que só elogia a normalidade democrática da boca para fora e não poupa desprezo pelo resultado das urnas; 20% do eleitorado votando verde deve ser um desvio. Sinal de atraso, e não de mudança.
Caminhamos todos para trás, enfim unidos. Fingimos que acreditamos que Dilma é uma mãe, Serra, um ambientalista, e Marina, mais conservadora que conservacionista.


MARCELO LEITE é repórter especial.


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