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MARCELO LEITE
20% verde
A pantomima de debate que
a campanha eleitoral na televisão e no rádio serviu aos
eleitores, no primeiro turno,
desandou de vez com com a
ressurreição enigmática da
questão do aborto.
A julgar pelo debate de domingo e pela ressurreição das
grávidas de Lula no programa
de José Serra, a palhaçada
veio para ficar.
Esse retrocesso da discussão política é lamentável. De
repente, parece que o único
problema do país, ou o mais
importante, é o aborto. Uma
agenda retrógrada, se não
uma cortina de fumaça nos
olhos do eleitorado.
O pior dessa regressão é a
tentativa de atribuir ao atraso
a única coisa nova que surgiu
nos programas encharcados
de marketing: a campanha de
Marina Silva, acomodada às
pressas no maleável Partido Verde.
Sua alta nas pesquisas de
intenção de voto e depois a
confirmação da "onda verde"
com 20 milhões de sufrágios
sofreram uma desvalorização.
Seriam, juram muitos, produto da migração de votos de
evangélicos insatisfeitos com
as supostas opiniões de Dilma
Rousseff a respeito da interrupção da gravidez.
Não cabe, na tacanha imaginação política que domina
as análises, a hipótese de que
a votação obtida por Marina
Silva tenha sido por seu programa, suas ideias ou seu desempenho nos debates engessados da TV. Que terceira via,
que nada. É o velho atraso nacional dando as caras, mais uma vez.
Se Marina Silva é da Assembleia de Deus, e se não renegou suas opiniões conservadoras sobre aborto, drogas,
homossexualismo etc., então
os votos que empalmou só podem ter origem em mentes
simplórias, que recuam em
horror diante da hipótese de
um genocídio abortivo.
É um silogismo mais amalucado que o normal em um país
avesso à lógica. O tipo do chute que, numa esfera pública
mais desenvolvida, ninguém
se arriscaria a dar sem apoio
em evidências. Onde estão?
O mesmo tipo de desqualificação se opera com os votos
dados ao PT. Tudo não passaria de retribuição pelos caraminguás recebidos com a Bolsa Família.
Mesmo que a motivação dos
47 milhões seja puramente
econômica, decorrente da alta
no emprego e na formalização
do trabalho, ou do aumento
do crédito e do consumo,
quem são os analistas para dizer que isso é irracional, atrasado ou despolitizado? Quem
é estúpido?
Tem gente que só elogia a
normalidade democrática da
boca para fora e não poupa
desprezo pelo resultado das
urnas; 20% do eleitorado votando verde deve ser um desvio. Sinal de atraso, e não de mudança.
Caminhamos todos para
trás, enfim unidos. Fingimos
que acreditamos que Dilma é
uma mãe, Serra, um ambientalista, e Marina, mais conservadora que conservacionista.
MARCELO LEITE é repórter especial.
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