São Paulo, quarta-feira, 12 de novembro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A crise perversa

JOSÉ VIEGAS


É a hora de os governos dos países emergentes deixarem claro que não pode haver uma volta a um passado de desigualdades

A CRISE que se está abatendo sobre as finanças e, em decorrência, sobre a economia produtiva do mundo inteiro ainda não mostrou a sua cara completa, mas é possível fazer alguns comentários sobre o seu caráter. Ela é perversa por várias razões.
Em primeiro lugar, ela é inédita. Pelas suas proporções, pelo aspecto inovador dos mecanismos de alavancagem financeira que a produziram e pelo fato de ocorrer no centro econômico de um sistema efetivamente globalizado, dela decorrerão conseqüências cujo alcance ainda não é de todo previsível.
O aspecto "perverso" que mais chama a atenção é que essa crise ocorre em razão de tendências que são inerentes ao capitalismo e que se manifestam em uma ocasião em que já ninguém discutia a validade e a viabilidade do próprio sistema econômico, visto por todos como o único possível, sem alternativas, após ter derrotado o comunismo de estilo soviético e dominado por completo a economia internacional.
Essa unificação do mundo econômico sob a hegemonia do capitalismo financeiro aliada ao enorme progresso ocorrido no campo da informática deu aos financistas globais um gigantesco poder, que foi usado, como é natural nesse sistema, para gerar lucros cada vez maiores.
O mercado de papéis sofisticou-se a tal ponto que chegou a acreditar que a sua engenharia financeira seria capaz de alavancar recursos que, só nos EUA, por exemplo, eram 35 vezes maiores do que os existentes na economia real; e que isso poderia ser feito indefinidamente. Não foi assim. E o problema gerado pela falta de anteparos regulatórios à ganância desmesurada dos financistas globais agora terá de ser pago por todos, mesmo os que, como nós, aqui no Brasil, não tínhamos nada a ver com isso.
Pior ainda: na prática, os únicos que detêm conhecimento técnico e informações suficientes sobre as operações financeiras globais são os próprios operadores dos mercados financeiros globais. Para resolver os problemas criados nos bancos e na roleta dos papéis, as soluções terão que ser necessária e incontornavelmente técnicas para atuar eficazmente sobre os mercados, diminuir os impactos negativos e restaurar algum vigor ao sistema capitalista global. Pouco importa que esse sistema esteja caindo aos pedaços e que tenha perdido a confiança dos seus próprios agentes econômicos. Não há alternativas a ele. Ninguém tem alternativas.
De acordo, portanto, com a lógica perversa estabelecida pelo sistema, cabe aos próprios responsáveis pela crise consertar os erros que a provocaram. Se o capitalismo global agora pede ajuda aos governos -que ele próprio queria diminuir e subjugar-, é porque os governos tampouco têm alternativas e têm que salvar o sistema. Deverá haver uma maior regulação dos mercados financeiros, mas, no que depender do setor financeiro, o sistema terá que ser operado por quem sabe operá-lo, e nós sabemos quem são eles.
Em conseqüência, vamos viver os próximos anos com um sistema remendado, desacreditado e gerido pelos mesmos que o levaram à beira da insolvência global. Ninguém poderá ficar surpreso se os mecanismos de alívio e correção de que o sistema ainda dispõe forem empregados para transferir recursos da periferia para o centro do capitalismo e para exportar a recessão do centro para a periferia. E isso não é aceitável.
Para que haja um projeto de solução justa para a crise, é preciso reforçar -na verdade construir- uma nova regulação internacional, mais sólida, justa e democrática. A crise não pode ser resolvida com decisões de âmbito apenas nacional e muito menos de caráter protecionista. Deve-se aproveitar o momento para gerar um regime internacional de tomada de decisões mais equilibrado, que consulte os verdadeiros interesses globais -os da humanidade.
Nesse sentido, a conferência internacional do próximo dia 15 deve ser vista como um primeiro passo de uma discussão longa e intensa em favor do estabelecimento de uma nova arquitetura financeira internacional que corrija de maneira mais equânime os desequilíbrios gerados pela ganância infrene dos agentes financeiros.
É a hora de os governos atuarem com independência, lucidez e perspectiva de longo prazo. É a hora de os governos dos países emergentes deixarem claro que não pode haver uma volta a um passado de desigualdades. O mundo já vinha mudando e a incúria dos financistas globais apenas acentua o sentido e a velocidade dessa mudança.


JOSÉ VIEGAS FILHO , 66, é embaixador do Brasil na Espanha. Foi ministro da Defesa (2004-2005).

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