São Paulo, quinta-feira, 12 de dezembro de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

O Plano B

Acompanhar os acontecimentos na Venezuela poderá ser instrutivo para quem está de olhos postos no Brasil. As diferenças entre os dois países, claro, são enormes, e as situações que atravessam são quase opostas. Nosso vizinho está dividido ao meio, à beira do colapso e da guerra civil, enquanto o Brasil pratica com serenidade uma real transferência de poder.
Se entre nós a democracia adquiriu, parece, o estatuto de um palco comum onde as regras são respeitadas por todos, na Venezuela a democracia se converteu em plataforma de assalto da oposição contra o governo e vice-versa. Instalou-se, ali, a lógica perversa da desconfiança entre os agentes políticos, cada um disposto não só a derrotar mas a destruir o outro.
Parte do problema tem a ver com a origem golpista de Chávez na política, sua fracassada rebelião contra o decrépito governo de Carlos Andrés Perez em 1992. Conforme o choque liberal dado por Perez na economia surtia suas devastadoras consequências sociais, Chávez foi se convertendo em ídolo popular na cadeia. Saiu para ser eleito presidente.
A fim de desmantelar a democracia oligárquica da Venezuela, Chávez tratou de estabelecer vínculos diretos com as massas. Como se limpasse compulsivamente das próprias mãos a nódoa do golpismo pregresso, criou um ritual de sucessivos referendos em que sua legitimidade é reiterada e seus poderes ampliados. O próximo está previsto para agosto de 2003.
Bem ou mal, havia na Venezuela um condomínio de interesses organizados em torno da indústria do petróleo que beneficiava setores amplos da classe média e dos trabalhadores. A democracia oligárquica era a expressão estável, desde os anos 50, dessa estrutura, que ruiu quando o modelo pré-liberal entrou em crise no mundo inteiro. Chávez governa seus escombros.
Incapaz de conter o empobrecimento do país, Chávez viu crescer a oposição empresarial e sindical a seu governo, que repete com ele o que ele se julgou no direito de fazer ao governo eleito de 92. Chávez apóia-se cada vez mais nos estratos mais pobres, favorecidos por políticas populistas e para quem ele é um líder quase religioso, que cultiva, aliás, um peculiar sincretismo de crenças enraizado na base da sociedade venezuelana.
Formou-se um insólito equilíbrio de forças, bem ilustrado pela deposição de abril, caso inédito em que um presidente, afastado por golpe, reconquista a cadeira dois dias depois. A oposição, em estado de desobediência civil, não é forte o bastante para remover o coronel, nem o governo deste é forte o bastante para se converter em ditadura.
Valendo-se dos comandos militares que o apóiam e de suas falanges de arruaceiros, Chávez pode tentar o golpe, mas a massa crítica já obtida pela oposição parece destiná-lo a ser efêmero. O mais provável é que Chávez seja, enfim, forçado a sair, se não nas próximas semanas ou meses, provavelmente no referendo de agosto, se ele não for antecipado, o que também parece plausível.
O desfecho da crise venezuelana poderá encerrar o ciclo do que se poderia chamar de golpismo mobilizador de esquerda na América Latina, numa história que teve início em Fidel e Che para terminar, no caso, em Chávez. A consequência imediata seria limitar ainda mais o horizonte do Plano B do presidente Lula, caso seu Plano A -o ortodoxo- fracasse.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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