São Paulo, segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

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JOÃO SAYAD

Harold Pinter

"Nada é absolutamente falso nem absolutamente verdadeiro", declarou Harold Pinter ao receber o Prêmio Nobel de Literatura para a língua inglesa. Depois, chamou o governo americano de mentiroso.
Verdade é como um corpo de mulher, envolto por um vestido largo e solto. O artista puxa os panos do vestido para desvendar as formas que esconde. Puxa para trás para perceber o formato dos seios. Estica para frente para desvendar a forma dos quadris e das pernas.
Acaba por inventar uma mulher linda e sensual a partir de um saco de pano que cobria um travesseiro.
Cientistas esticam e puxam modelos. Nos anos 60, a Força Aérea Americana queria um avião muito rápido e com grande autonomia de vôo. Contratou três firmas de projetos.
A primeira projetou avião com o maior alcance de vôo possível, sem levar em conta a velocidade. A segunda, um avião que voasse a alta velocidade sem levar em conta a autonomia de vôo. A terceira fez um projeto equilibrado, levando em conta os dois objetivos ao mesmo tempo. A solução da terceira firma foi medíocre.
A melhor solução foi a combinação dos dois projetos radicais, que resultou num avião mais rápido e com mais autonomia do que o projeto equilibrado. Cientistas são "poetas fortes".
O exemplo real foi apresentado por Albert Hirschman ao defender a idéia de que o desenvolvimento econômico, para ser desenvolvimento, é necessariamente desequilibrado. Há 20 anos, o Brasil e toda a América Latina procuram o desenvolvimento equilibrado -equilíbrio macroeconômico, economias abertas, apoio à pequena e média empresa, sistema jurídico confortável para o investidor estrangeiro. Crescemos 2,5% ao ano.
O crescimento na China é obra de um equilibrista que mantém três pratos girando na ponta de bengalas, uma em cada mão e a terceira no queixo -um país sem sistema jurídico amigável para investimentos, exporta mais do que importa, tem reservas cambiais absurdamente altas, sistema bancário insolvente e cresce mais do que 9% ao ano.
A evidência não modifica uma vírgula dos discursos dos ministros de economia e dos economistas politicamente corretos que apresentam o caso chinês como um exemplo de suas propostas.
Arte e ciência rasgam as roupas da língua, das formas de expressão consagradas e da lógica recebida em busca da liberdade e da verdade, que acabam inventando.
Embora a verdade não exista, a mentira existe. Mentir é poder.
Harold Pinter atacou o discurso americano. Que fala em implantação de democracia no Iraque e no mundo inteiro e é acusado de ter presídios clandestinos na Europa Oriental, onde pratica a tortura. Não perdoou nada. Lembrou do apoio americano aos governos militares da América Latina, aos Contras nas guerras civis da América Central, à Guerra do Vietnã. A Secretária Condoleezza Rice viaja pela Europa dizendo que tudo é mentira.
Harold Pinter não se conforma com o que ele mesmo descobriu. Política é poder e políticos são mentirosos.
A economia brasileira "cresce" baseada em sólidos "fundamentos" (um travesseiro). Economia é política. Política é irritante.


João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.
@ - jsayad@attglobal.net


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