|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Jejuo também por democracia real
LUIZ FLÁVIO CAPPIO
Acusam-me de inimigo da democracia por estar em jejum e oração combatendo um projeto autoritário e falacioso: o da transposição
ACUSAM-ME de inimigo da democracia por estar em jejum e
oração combatendo um projeto do governo federal autoritário, falacioso e retrógrado, que é o da transposição de águas do rio São Francisco.
Meu gesto não é imposição voluntarista de um indivíduo. Fosse isso,
não teria os apoios numerosos, diversificados e crescentes que tem tido de
representantes de amplos setores da
sociedade, inclusive do próprio PT.
Vivêssemos uma democracia republicana, real e substantiva, não teria
que fazer o que estou fazendo.
Um dos mais graves males da "democracia" no Brasil é achar que o
mandato dado pelas urnas confere
um poder ilimitado, aval para um total descompromisso com o discurso
de campanha, senha para o vale-tudo,
para mais poder e muito mais riquezas. Tráficos de influências, desvios
do erário, porcentagens em obras públicas e mensalões são práticas tradicionais na política brasileira, infelizmente, pelo visto, ainda longe de acabar. A sociedade está enojada e precisa se levantar.
Há políticos -e, infelizmente, não
são poucos- que, por onde passaram
na vida pública, deixaram um rastro
de desmandos, corrupção, enriquecimento ilícito etc. Como ainda funcionam o clientelismo eleitoral, a mitificação de personagens, as falsas promessas de campanha, o "toma-lá-dá-cá" e mais deseducação que educação
política do povo, esses políticos conseguem se reeleger e galgar posições
de alto poder em governos, quaisquer
que sejam as siglas e as alianças.
Na campanha do candidato Lula, o
tema crucial da transposição era evitado o máximo possível. Mas as campanhas eleitorais, à base do marketing e das verbas de "caixa dois" das
empresas, são tidas e havidas como
grandes manifestações do vigor de
nossa democracia, que, com urnas
eletrônicas, dá exemplo até aos EUA...
O projeto de transposição não é democrático, porque não democratiza o
acesso à água para as pessoas que passam sede na região semi-árida, distante ou perto do rio São Francisco.
O governo mente quando diz que
vai levar água para 12 milhões de sedentos. É um projeto que pretende
usar dinheiro público para favorecer
empreiteiras, privatizar e concentrar
nas mãos dos poucos de sempre as
águas do Nordeste, dos grandes açudes, somadas às do rio São Francisco.
A transposição não tem nada a ver
com a seca. Tanto que os canais do eixo norte, por onde correriam 71% dos
volumes transpostos, passariam longe dos sertões menos chuvosos e das
áreas de mais elevado risco hídrico. E
87% dessas águas seriam para atividades econômicas altamente consumidoras de água, como a fruticultura irrigada, a criação de camarão e a siderurgia, voltadas para a exportação e
com seríssimos impactos ambientais
e sociais.
Esses números são dos EIAs-Rima
(Estudos de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente), públicos por lei, já que, na internet, o governo só colocou peças
publicitárias.
O projeto de transposição é ilegal e
vem sendo conduzido de forma arbitrária e autoritária: os estudos de impacto são incompletos, o processo de
licenciamento ambiental foi viciado,
áreas indígenas são afetadas e o Congresso Nacional não foi consultado
como prevê a Constituição.
Há 14 ações que comprovam ilegalidades e irregularidades ainda não julgadas pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o governo colocou o Exército
para as obras iniciais, abusando do
papel das Forças Armadas, militarizando a região. A decisão do TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região,
de Brasília, em 10/12 deste ano, obrigando a suspensão das obras, é mais
uma evidência disso.
O mais revoltante, porque chega a
ser cruel, é que o governo insiste em
chantagear a opinião pública, em especial a dos Estados pretensos beneficiários, com promessas de água farta e
fácil, escondendo quem são os verdadeiros destinatários, os detalhes do
funcionamento, os custos e os mecanismos de cobrança pelos quais os pequenos usos subsidiariam os grandes,
como já acontece com a energia elétrica. Os destinos da transposição os
EIAs/Rima esclarecem: 70% para irrigação, 26% para uso industrial, 4%
para população difusa.
Temos um projeto muito maior.
Queremos água para 44 milhões de
pessoas no semi-árido. Para nove Estados, não apenas quatro. Para 1.356
municípios, não apenas 397. Tudo pela metade do preço previsto no PAC
para a transposição.
O Atlas Nordeste da ANA (Agência
Nacional de Águas) e as iniciativas da
ASA (Articulação do Semi-Árido) são
muito mais abrangentes, têm prioridade no abastecimento humano e utilizam as águas abundantes e suficientes do semi-árido.
Fui chamado de fundamentalista e
inimigo da democracia porque provoquei que o povo se levantasse e, disso,
os "democratas" que me acusam têm
medo. Por que não se assume a verdade sobre o projeto e se discute qual a
melhor obra, qual o caminho do verdadeiro desenvolvimento do semi-árido? É nisso que consiste a nossa luta e a verdadeira democracia.
DOM FREI LUIZ FLÁVIO CAPPIO, 61, é bispo diocesano da
cidade de Barra (BA) e autor do livro "Rio São Francisco,
uma Caminhada entre Vida e Morte".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Guilherme Afif Domingos: Ousar para inovar Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|