São Paulo, segunda-feira, 13 de janeiro de 2003

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Função e missão

ARNALDO CARRILHO


Ao contrário do que pensa o vulgo, nos regimes democráticos guerrear não é a missão central dos militares

O ex-presidente Fernando Henrique é neto, filho, sobrinho e primo de "canelas pretas", isto é, de oficiais do Exército brasileiro de antigamente. O qualificativo brincalhão se devia às perneiras de couro negro que, até 1944-45, eram peças do uniforme que endossavam, combinadas aos cinturões, coldres e talabartes, do mesmo material e tonalidade.
Esse parentesco ascendente e colateral nada lhe valeu na ditadura castrense: com base no famigerado AI-5, foi compulsoriamente aposentado como professor da USP em 1969. O mar não estava para peixe nestas plagas e teve de exilar-se, prosseguindo sua atividade acadêmica em outras bandas. É natural, contudo, que a condição familiar lhe deixara indeléveis marcas biográficas e de compreensão da vida nas casernas.
A criação do Ministério da Defesa foi um dos maiores êxitos do seu governo. Há muito mais de meio século aguardava-se a unificação corporativa das três Forças Armadas num mesmo tronco administrativo e técnico. Veio a nova instituição permitir maior eficiência e organicidade à execução da política de defesa nacional, emanada do seu comandante-em-chefe. É bem verdade que a pasta se implantou numa conjuntura adversa, o Plano Real sacudido pela crise global do sistema financeiro na Ásia do Leste e na Rússia (1997-99).
As consequências perversas fizeram-se de imediato sentir nos cortes orçamentários. Se até as atividades intendências periclitam, como atender às prementes carências de modernização e reequipamento bélico?
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu essa herança ambígua de um ministério enfim unificado, conquanto à míngua de recursos. Disposto a enfrentar o problema, como tantos outros que afligem a nação, cometeu ato da maior transcendência política, ao designar um diplomata para seu ministro da Defesa. Seria inócuo tecer comentários elogiosos ao embaixador José Viegas, destacando a folha de serviços exemplar que ostenta. O que mais importa é o fato em si, de viés didascálico, ou seja, o de a escolha recair sobre um egresso dos quadros militantes da chancelaria.
Ao contrário do que pensa o vulgo, nos regimes democráticos guerrear não é a missão central dos militares. Ninguém mais que eles conscientiza os horrores dos conflitos armados, que não poupam vencedores e vencidos de sequelas prolongadas. Humilhar povos inteiros não dá bons resultados, mesmo se em contrapartida a avanços de poderio mundial. Por outro lado, pagam-se caro os ressentimentos provocados, como estão perplexos descobrindo os cidadãos da hiperpotência americana.
Retenha-se como exemplo os sul-coreanos, libertados do jugo de prepostos stalinistas, mas obrigados décadas a fio a suportar tirânicos ditadores militares de direita, impostos pelo vetor estratégico de Washington. No momento, as ameaças de uma guerra anunciada contra o Iraque amedrontam os árabes no Oriente Médio, berço das crenças abraâmicas e reveladas. Esse transtorno neo-imperial na região infunde-lhes causa suficiente para se rebelarem. Já têm motivo, açoitados faz quase 56 anos pela questão palestina -e sabem que está em jogo a captura das suas reservas petrolíferas.
Diplomatas e militares têm muito em comum, em níveis de engajamento aos interesses nacionais permanentes. Lidam com temas correlatos, em torno da continuidade do Estado a que servem, daí exercerem mais missões que funções. São hierarquizados e trabalham quotidianamente com cenários ou teatros, informações cruzadas e possibilismos táticos. São os estrategistas do Brasil no mundo, de modo que não causa espanto que se desincumbam de encargos semelhantes. O atual chefe da diplomacia dos EUA é um general de exército, assim como o Brasil tem agora um embaixador à frente da defesa. Rio Branco anexou quase 1 milhão de km2 ao nosso território, obstando pelo direito internacional ao espargimento de sangue em conflitos fronteiriços. Os militares brasileiros foram sempre reconhecidos ao grande barão por essa façanha diplomática inédita na história.
Em 1879, no afã de abrir negociações com a China, dom Pedro 2 concordou no envio de um diplomata monárquico (Eduardo Callado) e um oficial de Marinha (Arthur Silveira da Motta) a Tientsin, metrópole diplomática do longínquo império manchu. O estudo das relações internacionais é parte dos currículos de formação, aperfeiçoamento e Estado-Maior dos militares. Muitos destes ensaiam textos de excepcional valor diplomático.
É que a política externa de qualquer país se esteia na defesa da soberania nacional pela negociação, ficando a guerra como último recurso. Criaram-se por isso adidâncias militares às missões diplomáticas; em casos especiais, como Hong Kong e Macau, as maiores potências contam com adidos militares às suas repartições consulares, observadores da China. Esses enviados são membros do corpo diplomático ou consular acreditados nos postos em que servem. O notável Vasco Leitão da Cunha trabalhou estreitamente com a FEB e o 5º Exército americano, seguindo suas tropas na reabertura de embaixadas e consulados brasileiros em países libertados do nazi-fascismo.
O presidente Lula bem sabe, e estejam seguros os cidadãos brasileiros, que a Defesa está em muito boas mãos em nosso país. O embaixador José Viegas consubstancia uma das suas mais acertadas designações, em termos de capacidade e devotamento do escolhido às mais nobres causas nacionais.

Arnaldo Carrilho, 65, diplomata, é diretor-presidente da Riofilme S/A.


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