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TENDÊNCIAS/DEBATES
Cabe à Justiça proibir a divulgação de imagens pela internet?
NÃO
A censura é inaceitável, sempre
ROBERTO ROMANO
A VIDA política e social de nossos dias tem a marca da visibilidade. As formas domésticas
de segredo e recato são violentadas
pelos vários poderes (do religioso ao
político, deste ao policial e ao militar).
À cidadania resta o espaço público como lugar de convívio civil, submetido
a regras válidas para todos.
A maior parte dos países atuais
exerce a razão estatal que define uma
diferença entre dirigidos e governantes. Os primeiros são vigiados pelos
segundos, sem a contrapartida. Diminuem os setores protegidos em proveito do olhar sem peias do fisco, da
polícia, de autoridades judiciais.
A igreja inventou a censura moderna e iniciou a expropriação da privacidade na Contra-Reforma, com o famoso "Livro do Estado de Almas",
ideado por Carlos Borromeu. Em formulários, os padres recolhiam dados
sobre a vida familiar, os costumes, as
posses, as crenças religiosas e políticas, as profissões e vícios dos leigos.
Era tempo de caça a protestantes,
ateus, agnósticos e devassos.
O programa tridentino, sintetizado
nas fichas de Borromeu, abriu caminho para técnica semelhante, usada
pelo Estado. No mundo político atual,
tudo é passível de ser visto pelos que
dirigem a burocracia. Se o funcionário superior desconfia de alguns cidadãos, ele põe -com alguns riscos- a
polícia para bisbilhotar as reais ou supostas irregularidades cometidas.
A crítica ao panoticismo estatal não
é privilégio democrático ou do liberalismo. Donoso Cortés, conservador,
descreve a lógica política e põe na boca dos governos o seguinte: "Temos 1
milhão de braços, não basta. Precisamos de 1 milhão de olhos". E tiveram
a polícia, diz o autor. "Não bastou ao
governo 1 milhão de olhos, ouvidos,
braços (...) Os governantes disseram:
precisamos ter o privilégio de nos encontrar ao mesmo tempo em todas as
partes". E tiveram isso também, diz
Cortés, "pois se inventou o telégrafo".
Em dias de internet, o milhão de
ouvidos, olhos e braços do poder político é multiplicado a serviço dos governos. E, para sacralizar a espionagem oficial da cidadania, encontra-se,
como elemento estratégico, a Justiça.
No Brasil, são numerosos os casos
de autorização de quebra de sigilo
sem base jurídica ou factual. A polícia
prende e arrebenta ou invade escritórios de advocacia, ferindo todos os direitos. As vítimas se queixam ao bispo. Poucos se levantam contra o voyeurismo oficial. Contudo, muitos desejam censurar a mídia quando se trata de pessoas que gratuitamente agridem o pudor da sociedade civil.
Como existem espiões oficiais em
demasia, o espaço social onde os indivíduos são livres das cadeias estatais
(pelo menos idealmente) merece reverência. Para garantir um mínimo
de respeito aos que pagam impostos,
há regras não escritas de etiqueta.
Se alguém usa a praia para copular,
agride o recato dos veranistas, invade
a vista alheia, suscita recriminação. E
levanta paixões miúdas, como a inveja. É contra-senso exigir que a Justiça
puna fotógrafos, pois reprimido antes
deve ser quem violou o decoro.
Proibir o instrumento de comunicação é ilógico, pois assim se admite a
licença, no mesmo passo em que se
proclama aos ricos e famosos o seu
pretenso direito de usar o espaço social para exibir dotes físicos, riqueza,
privilégio. Se eles assim agem, desejam pelo deboche ampliar e reforçar
suas riquezas, como Narcisos exibicionistas, com proteção jurídica.
Usar censura para garantir o indecoro sob a máscara da "privacidade" é
mais obsceno do que uma cópula na
praia. É desejar que a Justiça permaneça alheia às violações do trato civilizado, garantindo aos deuses da moda e da propaganda o direito ao estupro do pudor alheio.
Crimes como pornografia infantil e
golpes contra a fé pública devem ser
punidos com rigor. Mas que não sirvam de pretexto para exasperar o
controle dos cidadãos pelo Estado.
"Escândalo" vem de um vocábulo
grego que significa "mancar". No episódio em epígrafe, mancaram a modelo, o seu parceiro, os censores e os
"escandalizados" que silenciam ante
o vilipêndio ao direito público cometido pelos monopolistas da força física, da norma jurídica e dos impostos.
A censura da comunicação é o primeiro e pior sinal do poder regido pelo despotismo.
ROBERTO ROMANO , 60, filósofo, é professor titular de
ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e
Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII".
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