São Paulo, sábado, 13 de janeiro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cabe à Justiça proibir a divulgação de imagens pela internet?

NÃO

A censura é inaceitável, sempre

ROBERTO ROMANO

A VIDA política e social de nossos dias tem a marca da visibilidade. As formas domésticas de segredo e recato são violentadas pelos vários poderes (do religioso ao político, deste ao policial e ao militar). À cidadania resta o espaço público como lugar de convívio civil, submetido a regras válidas para todos.
A maior parte dos países atuais exerce a razão estatal que define uma diferença entre dirigidos e governantes. Os primeiros são vigiados pelos segundos, sem a contrapartida. Diminuem os setores protegidos em proveito do olhar sem peias do fisco, da polícia, de autoridades judiciais. A igreja inventou a censura moderna e iniciou a expropriação da privacidade na Contra-Reforma, com o famoso "Livro do Estado de Almas", ideado por Carlos Borromeu. Em formulários, os padres recolhiam dados sobre a vida familiar, os costumes, as posses, as crenças religiosas e políticas, as profissões e vícios dos leigos. Era tempo de caça a protestantes, ateus, agnósticos e devassos.
O programa tridentino, sintetizado nas fichas de Borromeu, abriu caminho para técnica semelhante, usada pelo Estado. No mundo político atual, tudo é passível de ser visto pelos que dirigem a burocracia. Se o funcionário superior desconfia de alguns cidadãos, ele põe -com alguns riscos- a polícia para bisbilhotar as reais ou supostas irregularidades cometidas.
A crítica ao panoticismo estatal não é privilégio democrático ou do liberalismo. Donoso Cortés, conservador, descreve a lógica política e põe na boca dos governos o seguinte: "Temos 1 milhão de braços, não basta. Precisamos de 1 milhão de olhos". E tiveram a polícia, diz o autor. "Não bastou ao governo 1 milhão de olhos, ouvidos, braços (...) Os governantes disseram: precisamos ter o privilégio de nos encontrar ao mesmo tempo em todas as partes". E tiveram isso também, diz Cortés, "pois se inventou o telégrafo".
Em dias de internet, o milhão de ouvidos, olhos e braços do poder político é multiplicado a serviço dos governos. E, para sacralizar a espionagem oficial da cidadania, encontra-se, como elemento estratégico, a Justiça. No Brasil, são numerosos os casos de autorização de quebra de sigilo sem base jurídica ou factual. A polícia prende e arrebenta ou invade escritórios de advocacia, ferindo todos os direitos. As vítimas se queixam ao bispo. Poucos se levantam contra o voyeurismo oficial. Contudo, muitos desejam censurar a mídia quando se trata de pessoas que gratuitamente agridem o pudor da sociedade civil.
Como existem espiões oficiais em demasia, o espaço social onde os indivíduos são livres das cadeias estatais (pelo menos idealmente) merece reverência. Para garantir um mínimo de respeito aos que pagam impostos, há regras não escritas de etiqueta. Se alguém usa a praia para copular, agride o recato dos veranistas, invade a vista alheia, suscita recriminação. E levanta paixões miúdas, como a inveja. É contra-senso exigir que a Justiça puna fotógrafos, pois reprimido antes deve ser quem violou o decoro.
Proibir o instrumento de comunicação é ilógico, pois assim se admite a licença, no mesmo passo em que se proclama aos ricos e famosos o seu pretenso direito de usar o espaço social para exibir dotes físicos, riqueza, privilégio. Se eles assim agem, desejam pelo deboche ampliar e reforçar suas riquezas, como Narcisos exibicionistas, com proteção jurídica. Usar censura para garantir o indecoro sob a máscara da "privacidade" é mais obsceno do que uma cópula na praia. É desejar que a Justiça permaneça alheia às violações do trato civilizado, garantindo aos deuses da moda e da propaganda o direito ao estupro do pudor alheio.
Crimes como pornografia infantil e golpes contra a fé pública devem ser punidos com rigor. Mas que não sirvam de pretexto para exasperar o controle dos cidadãos pelo Estado. "Escândalo" vem de um vocábulo grego que significa "mancar". No episódio em epígrafe, mancaram a modelo, o seu parceiro, os censores e os "escandalizados" que silenciam ante o vilipêndio ao direito público cometido pelos monopolistas da força física, da norma jurídica e dos impostos. A censura da comunicação é o primeiro e pior sinal do poder regido pelo despotismo.


ROBERTO ROMANO , 60, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII".


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