São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Amartya Sen, Philippe Parijs e justiça social

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY

Amartya Sen e Philippe Van Parijs são exemplos de pessoas que sabem ser o sal da terra. São como luzes que iluminam os caminhos e constroem um mundo melhor. Quando soube que ambos dariam um curso sobre justiça social e diversidade cultural na Universidade Harvard, escrevi perguntando se poderia assistir à primeira aula. Amartya me convidou para estar lá no último dia 7.
Foi um momento feliz para a história do pensamento de todos os que acompanham os debates no mundo acadêmico e na prática dos povos. Amartya Sen é laureado com o Prêmio Nobel de Economia por ter contribuído em suas obras para o debate sobre meios de erradicar a pobreza absoluta, a fome e a desigualdade. Segundo a Academia Real da Suécia, "ao combinar instrumentos de economia e de filosofia, ele restaurou a dimensão ética na discussão de problemas econômicos vitais". Ele foi um dos responsáveis pela instituição do Índice de Desenvolvimento Humano usado pela ONU.


Os conceitos de justiça podem estar relacionados à diversidade cultural, inclusive à diversidade lingüística


Philippe Van Parijs é professor de filosofia e de ética econômica da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, e um dos principais fundadores da Bien (Basic Income European Network), em 1986. Em 2001, o rei da Bélgica lhe conferiu o Prêmio Francqui -para a pessoa que mais contribuiu para o desenvolvimento do conhecimento humano em todas as áreas. A Universidade Harvard convidou Philippe Van Parijs para dar o curso de filosofia no lugar de um dos mais importantes filósofos contemporâneos, John Rawls, falecido há pouco mais de um ano.
Trata-se de um curso para os que estão fazendo o mestrado ou o doutorado. Havia sido reservada uma sala para 50 alunos, mas apareceram uns 80. Muitos se sentaram no chão, e ele propôs mudar de sala. Ali estava a primeira aplicação de justiça social: a consideração pela minoria no chão. Mudaram-se para uma sala maior, onde todos couberam.
Amartya então começou a explicar como os conceitos de justiça podem estar relacionados à diversidade cultural, inclusive à diversidade lingüística, e os problemas decorrentes disso. Philippe perguntou na classe quantos tinham o inglês como língua materna. Cerca de 40% tinham outro idioma. Deveria a justiça social ser compreendida de maneira diferente em culturas diferentes?
Amartya Sen gosta muito de usar parábolas. Como a de Annapurna, que queria contratar alguém para arrumar o seu jardim, que estava abandonado. Havia três trabalhadores desempregados que ela gostaria de ajudar, igualmente bons. Só que aquele trabalho poderia ser feito por apenas um deles. Sendo uma pessoa criteriosa, ela pensou sobre qual deveria contratar, sabendo que os três precisavam muito do serviço.
Dinu era o mais pobre dos três. Pois, então, o que seria melhor do que ajudar o mais pobre? Mas Bishanno tinha recentemente ficado pobre e se tornara muito deprimido. Portanto, para melhorar a situação do que estava mais infeliz, possivelmente seria melhor contratá-lo. Havia ainda Rogini, que contraíra uma doença crônica e precisava muito do dinheiro para pagar o tratamento. Seria muito importante, portanto, contratar essa terceira pessoa para melhorar a sua qualidade de vida e libertá-la da doença.
Dependendo do enfoque que cada um tiver, o conceito de justiça pode diferir. Amartya Sen prossegue ilustrando formas de resolver problemas contenciosos entre sindicatos e empregadores, entre os Estados e a União, entre um indivíduo e outro, seja pela negociação ou por alguma forma de arbitragem, especialmente importante quando falha a negociação. Afinal, por que as pessoas têm visões diferentes de justiça?
Sen e Van Parijs relembram os princípios de justiça que, segundo John Rawls, devem ser levados em consideração se quisermos construir uma sociedade justa:
1. Toda pessoa tem direito igual ao conjunto mais extenso de liberdades fundamentais que seja compatível com a atribuição a todos desse mesmo conjunto de liberdades (princípio de igual liberdade).
2. As desigualdades de vantagens socioeconômicas só se justificam se (a) contribuem para melhorar a sorte dos membros menos favorecidos da sociedade (princípio da diferença) e se (b) são ligadas a posições que todos têm oportunidades eqüitativas de ocupar (princípio de igualdade de oportunidades).
Amartya Sen então diz que, neste curso, iremos examinar em que medida a Renda Básica de Cidadania, incondicional, será um instrumento de política econômica que poderá levar à realização de maior justiça. Naquela noite, no jantar, saudei o fato de ele ter aberto essa possibilidade. Enviei minha especial saudação à sua esposa, Emma Rothschild, que já está engajada no movimento pela instituição da renda básica. Agora ele se abriu inteiramente para, da maneira mais séria do ponto de vista das ciências sociais, apreciá-la.
Philippe van Paris afirmou que seria muito difícil para os americanos, que têm tão fortemente arraigado o valor da ética de trabalho, aceitar a proposta de uma renda básica incondicional. Segundo ele, o papel do filósofo é ir além, mostrar não apenas o que as pessoas estariam dispostas a aceitar, e sim aquilo que é justo e viável para transformar o estado de coisas. Seus alunos o aplaudiram quando explicou isso e mostrou a camiseta que trouxe do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, com o lema "Um outro mundo é possível". Claro que é.

Eduardo Matarazzo Suplicy, 63. doutor em economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA) e professor da Fundação Getulio Vargas, é senador pelo PT-SP. É autor do livro "Renda de Cidadania - a Saída é pela Porta" (Cortez e Fundação Perseu Abramo).


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