|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
É correto que Júlia Lira, 7, desfile como rainha
da
bateria da escola de samba Unidos do Viradouro?
SIM
Compromisso com a dignidade da criança
MARTIM DE ALMEIDA SAMPAIO
ENQUANTO família, sociedade e
poder público, temos o dever de
assegurar às crianças e aos adolescentes, com total prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, à dignidade, à convivência
familiar e comunitária (artigo 227 da
Constituição). Portanto, diante de
nossas crianças e adolescentes, devemos sempre adotar uma atitude de
cuidado compartilhado, que não tolere nenhum tipo de negligência.
Certamente, a vulnerabilidade da
infância ajuda a sustentar a polêmica
em torno da decisão do juízo da Vara
da Infância e da Juventude do Estado
do Rio de Janeiro de conceder uma
autorização judicial para que uma
criança de sete anos possa vir a desfilar como rainha da bateria da escola
de samba Unidos do Viradouro no
Carnaval carioca deste ano.
Essa polêmica pode ser salutar,
pois busca delimitar o alcance do vocábulo "cuidado" enquanto categoria
de valor jurídico, que contempla e
protege crianças e adolescentes, delimitando seus direitos e deveres.
O mito de erotização que cerca as
rainhas de baterias de escolas de samba é um fato. Porém, esse paradigma
pode estar mudando no Carnaval deste ano. De um lado temos uma criança
de sete anos que será rainha da Viradouro, e, de outro, a cantora Elza Soares, uma veterana com mais de 70
anos (revelados), irá desfilar como
madrinha de bateria da Mocidade.
Dessa forma, podemos entender
que as musas sensuais, que sempre tiveram prevalência à frente das baterias de escolas de samba, podem estar
perdendo terreno para o novo e para a
experiência.
Nunca é demais lembrar que somos
responsáveis pela sociedade, e a decisão de liberar a criança para fazer o
desfile é positiva no sentido de separar a grossa pornografia e a pedofilia
de um espetáculo de cunho universal
que faz parte da cultura nacional.
Os pais da menina estão dispostos a
cumprir os requisitos determinados
pela Justiça, dentre os quais o de
acompanhar a menor durante o desfile.
Até porque o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA), em seu artigo
75, parágrafo único, estabelece que
crianças menores de dez anos somente podem permanecer em locais de
apresentação ou exibição acompanhadas dos pais ou responsáveis.
A menina, entusiasmada, talvez pelo ambiente carnavalesco que cerca a
cidade do Rio de Janeiro nesta época,
está motivada com a possibilidade de
desfilar na avenida. Seus pais, cientes
das dificuldades, cumpriram tudo
aquilo que determina a legislação
aplicável e socorreram-se do Poder
Judiciário. Este houve por bem entender que não haverá violação do
princípio do melhor interesse da
criança ou da dignidade humana.
Ora, vivemos em um Estado de Direito, e a função do Poder Judiciário é
mediar os conflitos sociais, bem como
proteger os jurisdicionados com a
aplicação da Justiça distributiva baseado no imperativo da lei.
Relevante questão diz respeito aos
trajes e horário que a criança irá se
apresentar, pois deverão ser preservadas a sua dignidade pessoal e moral
e a inocência da pouca idade. O juízo
da Vara da Infância estabeleceu condições e limites que os responsáveis
pela menor deverão observar, sob as
penas da lei.
Há que observar que os ensaios da
escola de samba fazem parte do cotidiano e das relações socioafetivas
dessa criança, uma vez que seu pai é o
presidente da agremiação e a mãe
também está envolvida no dia a dia da
escola. Portanto, o acesso a esse tipo
de espetáculo não se choca com a rotina e o desenvolvimento da menina,
mas faz parte de um universo simbólico conhecido da criança.
Apenas o imaginário infantil migrará para o plano real, sem prejuízo à
sua formação moral.
Na complexidade de um mundo em
profunda transformação, a realidade
mais uma vez acabará dando a moldura legal para o caso concreto, prevalecendo a antiga lição de que "o direito é
coisa essencialmente viva".
MARTIM DE ALMEIDA SAMPAIO, advogado, é conselheiro e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da
OAB-SP.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Carlos Nicodemos: Folia, foliões e os direitos das crianças
Índice
|