São Paulo, sábado, 13 de fevereiro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É correto que Júlia Lira, 7, desfile como rainha da bateria da escola de samba Unidos do Viradouro?

SIM

Compromisso com a dignidade da criança

MARTIM DE ALMEIDA SAMPAIO

ENQUANTO família, sociedade e poder público, temos o dever de assegurar às crianças e aos adolescentes, com total prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade, à convivência familiar e comunitária (artigo 227 da Constituição). Portanto, diante de nossas crianças e adolescentes, devemos sempre adotar uma atitude de cuidado compartilhado, que não tolere nenhum tipo de negligência.
Certamente, a vulnerabilidade da infância ajuda a sustentar a polêmica em torno da decisão do juízo da Vara da Infância e da Juventude do Estado do Rio de Janeiro de conceder uma autorização judicial para que uma criança de sete anos possa vir a desfilar como rainha da bateria da escola de samba Unidos do Viradouro no Carnaval carioca deste ano.
Essa polêmica pode ser salutar, pois busca delimitar o alcance do vocábulo "cuidado" enquanto categoria de valor jurídico, que contempla e protege crianças e adolescentes, delimitando seus direitos e deveres.
O mito de erotização que cerca as rainhas de baterias de escolas de samba é um fato. Porém, esse paradigma pode estar mudando no Carnaval deste ano. De um lado temos uma criança de sete anos que será rainha da Viradouro, e, de outro, a cantora Elza Soares, uma veterana com mais de 70 anos (revelados), irá desfilar como madrinha de bateria da Mocidade.
Dessa forma, podemos entender que as musas sensuais, que sempre tiveram prevalência à frente das baterias de escolas de samba, podem estar perdendo terreno para o novo e para a experiência.
Nunca é demais lembrar que somos responsáveis pela sociedade, e a decisão de liberar a criança para fazer o desfile é positiva no sentido de separar a grossa pornografia e a pedofilia de um espetáculo de cunho universal que faz parte da cultura nacional.
Os pais da menina estão dispostos a cumprir os requisitos determinados pela Justiça, dentre os quais o de acompanhar a menor durante o desfile.
Até porque o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 75, parágrafo único, estabelece que crianças menores de dez anos somente podem permanecer em locais de apresentação ou exibição acompanhadas dos pais ou responsáveis.
A menina, entusiasmada, talvez pelo ambiente carnavalesco que cerca a cidade do Rio de Janeiro nesta época, está motivada com a possibilidade de desfilar na avenida. Seus pais, cientes das dificuldades, cumpriram tudo aquilo que determina a legislação aplicável e socorreram-se do Poder Judiciário. Este houve por bem entender que não haverá violação do princípio do melhor interesse da criança ou da dignidade humana.
Ora, vivemos em um Estado de Direito, e a função do Poder Judiciário é mediar os conflitos sociais, bem como proteger os jurisdicionados com a aplicação da Justiça distributiva baseado no imperativo da lei.
Relevante questão diz respeito aos trajes e horário que a criança irá se apresentar, pois deverão ser preservadas a sua dignidade pessoal e moral e a inocência da pouca idade. O juízo da Vara da Infância estabeleceu condições e limites que os responsáveis pela menor deverão observar, sob as penas da lei.
Há que observar que os ensaios da escola de samba fazem parte do cotidiano e das relações socioafetivas dessa criança, uma vez que seu pai é o presidente da agremiação e a mãe também está envolvida no dia a dia da escola. Portanto, o acesso a esse tipo de espetáculo não se choca com a rotina e o desenvolvimento da menina, mas faz parte de um universo simbólico conhecido da criança.
Apenas o imaginário infantil migrará para o plano real, sem prejuízo à sua formação moral. Na complexidade de um mundo em profunda transformação, a realidade mais uma vez acabará dando a moldura legal para o caso concreto, prevalecendo a antiga lição de que "o direito é coisa essencialmente viva".

MARTIM DE ALMEIDA SAMPAIO, advogado, é conselheiro e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP.


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