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TENDÊNCIAS/DEBATES
NÃO
Folia, foliões e os direitos das crianças
CARLOS NICODEMOS
COM O processo de redemocratização do Estado brasileiro, instaurado no início da década de
1980 e consolidado institucionalmente com a Constituição Federal de
1988, incorporou-se na lógica política
e jurídica do Brasil a proteção intransigente dos direitos humanos, passando estes a serem considerados indispensáveis para a nossa existência
enquanto país-nação.
Nesse cenário, desenvolveu-se um
conjunto de políticas de proteção de
direitos humanos, entre os quais estão os direitos das crianças e dos adolescentes. Tais direitos possuem como arcabouço jurídico de sustentação a Convenção Internacional dos
Direitos Humanos das Crianças, documento da ONU de 1989, a Constituição Federal de 1988, notadamente
o artigo 227, e o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA).
Este último conjunto normativo é
orientado por princípios norteadores, como o de considerar a criança e o
adolescente sujeitos em peculiar processo de desenvolvimento.
No contexto do Carnaval (produto
da história do Brasil), é possível afirmar que crianças e adolescentes no
Brasil são dotados do direito ao lazer
e à cultura, ou seja, são verdadeiros cidadãos da folia. Por outro lado, essa
participação não pode ser pensada e
praticada fora da lógica dos fundamentos jurídicos mencionados e, especialmente, apartada da condição da
criança de estar em processo de desenvolvimento humano e social.
O caso da pequena Júlia Lira e sua
participação no Carnaval do Rio de
Janeiro como rainha da bateria de
uma escola de samba é a expressão de
que a folia se coloca sobre os interesses da jovem foliã.
Efetivamente, não somos contra a
participação de crianças no Carnaval.
Somos a favor de que essa participação se dê em condições de favorecer o
crescimento saudável das crianças e
dos adolescentes. Ocupar o posto de
rainha da bateria de uma escola de
samba, que tradicionalmente é comercializado para mulheres adultas
que reúnam critérios de alta erotização, certamente não atende o reclame
das leis que mencionamos, que vedam toda forma de ameaça ou violação de direitos, exigindo, nessas hipóteses, a proteção das crianças por parte da família, da sociedade e do Estado, tudo na forma do ECA.
O argumento da juíza de Direito
que concedeu a autorização para que
tal fato se consumasse na avenida do
Carnaval, qual seja, que não necessariamente ocorre a erotização, somado
à afirmação do pai da pequena Júlia
Lira, presidente da escola de samba,
que recusara oferta de R$ 180 mil de
uma musa para desempenhar o papel
de rainha da bateria para assegurar a
participação da pequena Júlia, indica
uma flexibilização de direitos humanos que não é própria para a condição
do Brasil, como uma República intransigente protetora de direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
O processo social de erotização da
infância caminha a passos largos na
sociedade moderna, dentro e fora do
Carnaval. Está no cotidiano, em casa,
nas novelas, na escola etc. Trata-se de
uma variável social vinculada ao problema das violências sexuais de crianças e adolescentes que deve ser enfrentado em todos os níveis, inclusive
nas formas subliminares, como no caso que ora debatemos.
O esforço de alguns segmentos da
sociedade civil organizada aliada das
autoridades públicas no enfrentamento das violências sexuais de
crianças e adolescentes, especialmente contra a prática da pedofilia,
sucumbe como ineficaz quando toleramos de forma consciente e inconsciente as manifestações de erotização
precoce de crianças e adolescentes.
Crianças e adolescentes são dotados de sexualidades, sendo esta um
direito que deve ser contextualizado
no processo gradativo de desenvolvimento de que aqui já tratamos.
Dessa maneira, fica claro que o caso
da pequena Júlia Lira, amada e protegida pelos seus pais, é apenas um
exemplo da cultura da tolerância com
o intolerável, na qual colocamos a
pergunta: afinal, trata-se aqui de
atendermos o interesse da criança ou
do Carnaval?
Assim, na avenida do samba, percebe-se que a folia sobrepõe-se à foliã, e
o descompasso com o respeito à condição peculiar de uma criança de sete
anos certamente retirará pontos do
Estado brasileiro nos quesitos democracia e direitos humanos.
CARLOS NICODEMOS, advogado, membro da OAB-RJ e
coordenador-executivo da organização de direitos humanos Projeto Legal, é presidente do Conselho Estadual de
Defesa da Criança do Estado do Rio de Janeiro.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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