São Paulo, sábado, 13 de fevereiro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

NÃO

Folia, foliões e os direitos das crianças

CARLOS NICODEMOS

COM O processo de redemocratização do Estado brasileiro, instaurado no início da década de 1980 e consolidado institucionalmente com a Constituição Federal de 1988, incorporou-se na lógica política e jurídica do Brasil a proteção intransigente dos direitos humanos, passando estes a serem considerados indispensáveis para a nossa existência enquanto país-nação.
Nesse cenário, desenvolveu-se um conjunto de políticas de proteção de direitos humanos, entre os quais estão os direitos das crianças e dos adolescentes. Tais direitos possuem como arcabouço jurídico de sustentação a Convenção Internacional dos Direitos Humanos das Crianças, documento da ONU de 1989, a Constituição Federal de 1988, notadamente o artigo 227, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Este último conjunto normativo é orientado por princípios norteadores, como o de considerar a criança e o adolescente sujeitos em peculiar processo de desenvolvimento. No contexto do Carnaval (produto da história do Brasil), é possível afirmar que crianças e adolescentes no Brasil são dotados do direito ao lazer e à cultura, ou seja, são verdadeiros cidadãos da folia. Por outro lado, essa participação não pode ser pensada e praticada fora da lógica dos fundamentos jurídicos mencionados e, especialmente, apartada da condição da criança de estar em processo de desenvolvimento humano e social.
O caso da pequena Júlia Lira e sua participação no Carnaval do Rio de Janeiro como rainha da bateria de uma escola de samba é a expressão de que a folia se coloca sobre os interesses da jovem foliã. Efetivamente, não somos contra a participação de crianças no Carnaval.
Somos a favor de que essa participação se dê em condições de favorecer o crescimento saudável das crianças e dos adolescentes. Ocupar o posto de rainha da bateria de uma escola de samba, que tradicionalmente é comercializado para mulheres adultas que reúnam critérios de alta erotização, certamente não atende o reclame das leis que mencionamos, que vedam toda forma de ameaça ou violação de direitos, exigindo, nessas hipóteses, a proteção das crianças por parte da família, da sociedade e do Estado, tudo na forma do ECA.
O argumento da juíza de Direito que concedeu a autorização para que tal fato se consumasse na avenida do Carnaval, qual seja, que não necessariamente ocorre a erotização, somado à afirmação do pai da pequena Júlia Lira, presidente da escola de samba, que recusara oferta de R$ 180 mil de uma musa para desempenhar o papel de rainha da bateria para assegurar a participação da pequena Júlia, indica uma flexibilização de direitos humanos que não é própria para a condição do Brasil, como uma República intransigente protetora de direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
O processo social de erotização da infância caminha a passos largos na sociedade moderna, dentro e fora do Carnaval. Está no cotidiano, em casa, nas novelas, na escola etc. Trata-se de uma variável social vinculada ao problema das violências sexuais de crianças e adolescentes que deve ser enfrentado em todos os níveis, inclusive nas formas subliminares, como no caso que ora debatemos.
O esforço de alguns segmentos da sociedade civil organizada aliada das autoridades públicas no enfrentamento das violências sexuais de crianças e adolescentes, especialmente contra a prática da pedofilia, sucumbe como ineficaz quando toleramos de forma consciente e inconsciente as manifestações de erotização precoce de crianças e adolescentes.
Crianças e adolescentes são dotados de sexualidades, sendo esta um direito que deve ser contextualizado no processo gradativo de desenvolvimento de que aqui já tratamos. Dessa maneira, fica claro que o caso da pequena Júlia Lira, amada e protegida pelos seus pais, é apenas um exemplo da cultura da tolerância com o intolerável, na qual colocamos a pergunta: afinal, trata-se aqui de atendermos o interesse da criança ou do Carnaval?
Assim, na avenida do samba, percebe-se que a folia sobrepõe-se à foliã, e o descompasso com o respeito à condição peculiar de uma criança de sete anos certamente retirará pontos do Estado brasileiro nos quesitos democracia e direitos humanos.

CARLOS NICODEMOS, advogado, membro da OAB-RJ e coordenador-executivo da organização de direitos humanos Projeto Legal, é presidente do Conselho Estadual de Defesa da Criança do Estado do Rio de Janeiro.


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