São Paulo, sexta-feira, 13 de março de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A maior vaquinha da história

ABRAM SZAJMAN


Até os países mais pobres socializarão o prejuízo, sob a forma da aceitação dos juros negativos para os papéis do governo norte-americano


OS ECONOMISTAS estão prevendo que o déficit público dos EUA em 2009 chegue a US$ 1,75 trilhão, maior valor dos últimos 50 anos, equivalente a 12,3% do PIB atual do país. Se somarmos a esse déficit a quantia estimada de US$ 3 trilhões para sanear o sistema financeiro, teremos um quadro que levaria a moeda e os títulos de qualquer outro país a virar pó. Por muito menos do que isso, ao longo do século 20, inúmeras nações quebraram, os compradores de seus papéis sumiram e suas economias, incluindo a brasileira, estiveram por longos períodos internadas na UTI do FMI, recebendo transfusões para não morrer de inanição.
Com os EUA, porém, tudo se passa de maneira diferente e paradoxal. Os títulos norte-americanos com vencimento em dois anos tiveram taxa de remuneração nominal redu- zida para 0,75% ao ano no final de 2008. Apesar disso, o mercado financeiro mundial continua a refugiar-se no dólar e demonstra acreditar na eficácia dos ajustes que estão sendo realizados para evitar a deteriora- ção definitiva da moeda.
Atravessando um pântano do qual desconhecem a profundidade, a extensão e as possíveis ameaças submersas -como demonstra ser essa crise cada vez mais envolta em incertezas-, os investidores exercitam a célebre aversão ao risco, eufemismo para designar o jacaré dos créditos podres que flutuam sob o disfarce da vistosa classificação AAA -conferida pelos míopes analistas da zoologia financeira. Dessa forma eles correm, por incrível que pareça, para o epicentro do terremoto, considerando os papéis do governo norte-americano como uma reserva de valor, ainda que paguem juros negativos.
O mistério desse paradoxo reside nos três fatores que, conjugados, contam na hora de investir, tanto no que se refere às pessoas e suas poupanças como aos países e suas reservas. São eles: segurança, liquidez e rentabilidade. Quando a porca torce o rabo e perdas milionárias se acumulam da noite para o dia, segurança e liquidez pesam muito mais que rentabilidade.
Em meio a esse transe, porém, surgem dúvidas angustiantes: qual a mágica que sustenta um mercado financeiro gigante, mas virtualmente quebrado? O que impede a China e outros países de se desfazerem dos títulos norte-americanos de longo e de médio prazos, provocando uma corrida que levaria o dólar a derreter?
Se exercitarmos a nossa memória, veremos que a resposta para essas perguntas já foi dada no início da década de 1970, quando os EUA romperam o lastro em ouro que até então garantia o dólar, lançando ao resto do mundo o célebre desafio: a moeda é nossa, mas o problema é de vocês.
Desde então, nenhuma outra moeda qualificou-se para substituir o dólar como divisa de uso comum, aceita em todos os países. Em outras palavras, como a moeda representa o poder e a riqueza de uma nação, nenhum país ou grupo de países conseguiu, até agora, tornar-se alternativa para ao menos equilibrar ou limitar as hegemonias financeira e militar dos EUA, acentuadas após o fim da Guerra Fria. E, lamentavelmente, esse poder e essa riqueza foram usados, em especial nos oitos anos da sombria era Bush, para imprimir papel pintado e promover orgia de gastos, de consumo desenfreado e de destruição ambiental que resultou nessa encruzilhada para a humanidade, confrontada com um planeta doente e perversamente desigual.
Agora, por falta de opção, espremidos entre a cruz e a caldeira de uma situação de fato, todos os países e povos, até mesmo os mais pobres e miseráveis, acabarão socializando esse prejuízo, sob a forma da aceitação dos juros negativos para os papéis do governo americano. Será a maior vaquinha já feita na história da vida econômica das nações, que devem aproveitar a lição para refletir sobre as consequências da concentração do desenvolvimento nas mãos de um ou mesmo nas de apenas alguns países.
Como muitos líderes mundiais já se deram conta, este é o momento de mudar os rumos da globalização, de modo a evitar que a chantagem se repita. Aproveitando-se do fato de que a potência hegemônica, agora sob nova direção, está absorvida por seus imensos problemas internos e externos, o conjunto dos países representados por organismos como o G20 tem agora a oportunidade de romper com o modelo da era dos impérios -baseado na concentração da produção, dos investimentos, da riqueza e do controle militar das fontes de matéria-prima-, construindo em seu lugar um mundo solidário e pacífico, no qual todos os povos terão acesso aos benefícios dos progressos econômicos e científicos.

ABRAM SZAJMAN, 69, empresário, é presidente da Fecomercio-SP (Federação do Comércio do Estado de São Paulo) e dos Conselhos Regionais do Sesc (Serviço Social do Comércio) e do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial).


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