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TENDÊNCIAS/DEBATES
Acerta a Justiça de Timóteo (MG) ao condenar casal que tirou filhos da escola para educá-los em casa?
SIM
A saída não é o isolamento
RUDÁ RICCI
O CASO recente em que a Justiça de Timóteo (MG) condenou
pais que retiraram seus dois filhos adolescentes da escola para ensinar-lhes em casa, prática que nos
EUA é conhecida como "homeschooling", abre um importante debate sobre o papel da educação brasileira
("Juiz condena pais por educar filhos
em casa", Cotidiano, 6/3).
O juiz apoiou-se no artigo 55 do Estatuto da Criança e Adolescente, que
obriga pais a matricular seus filhos na
escola. Mas a questão não se atém à
interpretação da lei. Ela é mais complexa e merece maior reflexão. Destaco quatro pontos que merecem maior
aprofundamento:
1) Nossa cultura privilegia a responsabilidade da comunidade. É o
oposto da cultura anglo-saxônica, que
imputa ao indivíduo em qualquer idade a responsabilidade e a punição de
seus atos julgados improcedentes.
Em países latinos como o nosso,
compreende-se que os adultos e a comunidade são responsáveis pela passagem da criança à vida adulta. Daí
que um ato infracional de uma criança é depositado como responsabilidade de seus pais ou responsáveis.
No caso dos adolescentes, a situação é mais complexa: considera-se
que são responsáveis por seus atos,
mas não imputáveis, justamente porque ainda transitam para a vida adulta. As medidas socioeducativas são
ações de reeducação e socialização.
2) Esse desconhecimento atinge
mais fortemente a classe média brasileira. Estudo recente de Amaury de
Souza e Bolívar Lamounier apresenta
um quadro estarrecedor, em que a família aparece como o mais importante agrupamento social confiável (para
85% dos pesquisados), superando em
muito o segundo, de amigos (confiável para apenas 43%). A participação
em organizações sociais é praticamente desconsiderada. Esse é um elemento cultural que compõe a "ideologia da intimidade", em que se desconsidera a solidariedade societária, as
instituições e os espaços públicos.
O caso de Timóteo reforça, na prática, a resolução de problemas com as
políticas públicas pela própria família. No limite, estaríamos nos desgarrando socialmente, esgarçando a sociedade em ações individualistas.
3) Há outros exemplos que poderiam ter gerado inspiração nos pais
no caso de Timóteo e que também são
originários dos EUA, como é o caso da
Charter School, escolas administradas por pais que são avaliadas periodicamente pelo Estado e até mesmo
recebem subvenção pública. Mas essa
opção não faz parte da cultura da classe média brasileira porque ela desconfia de tudo o que não é família.
4) O mais grave, contudo, é a banalização da educação como prática ao
alcance de não profissionais. Tão grave quanto a situação da educação pública é a saúde e a segurança públicas.
Mas não houve nenhum movimento
de cidadãos para operar os filhos em
suas próprias residências ou para perseguir bandidos com armas privadas.
O que faz uma família acreditar que
sabe educar seus filhos em suas casas,
desconsiderando a formação de tantos profissionais da área, sem que tenham habilitação, estudo e experiência? Por que não criamos uma articulação de pais para lutar pela melhoria
da educação? Por que não se pensa o
futuro dos outros filhos, dos brasileiros desconhecidos por nós?
A educação é um ato solidário e de
socialização. Autores reconhecidos,
como Lev Vygotsky, comprovaram o
quanto estímulos de turmas heterogêneas criam situações de desenvolvimento de muitas áreas da inteligência humana, além de desenvolver a tolerância diante do diferente. A educação restrita ao seu próprio lar é pobre
e meramente instrumental.
Vivemos um período de banalização de tudo o que é público. Não percebemos o efeito bumerangue, que
nos atinge em cheio, assim como atinge o futuro de nossos filhos.
A saída isolada, de mero benefício
aos membros de nossa família, a redução da educação ao sucesso individual é uma triste declaração de falência de nossa sociedade, da esperança
de viver juntos, entre diferentes que
se respeitam e que constroem soluções coletivas.
Talvez esses pais de Timóteo não
merecessem punição em virtude de
sua boa vontade e intenção. Mas eles
erraram e não podem ser exemplo para nenhuma criança ou adolescente.
RUDÁ RICCI, 47, doutor em ciências sociais, é consultor
educacional do SindUTE-MG (Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais) e do Sinesp (Sindicato dos Especialistas de Educação do Ensino Público
Municipal de São Paulo).
rudaricci.blogspot.com
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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