São Paulo, terça-feira, 13 de abril de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Dialética da servidão

DEMÉTRIO MAGNOLI

Há quatro décadas, em 1965, marines dos EUA desembarcaram na República Dominicana para frustrar um levante militar que tentava devolver a Presidência ao intelectual de esquerda Juan Bosch, eleito democraticamente em 1963 e destituído meses depois por um golpe de Estado. Na moldura da Guerra Fria e no rastro da Revolução Cubana, a administração Lyndon Johnson declarava que não permitiria a instalação de "outro governo comunista" no hemisfério americano. Poucos dias depois, a 10ª Reunião de Consulta da Organização dos Estados Americanos (OEA), convocada pelos EUA, despachava para o país caribenho uma Força Interamericana de Paz. As tropas da OEA ficaram sob o comando do Brasil, que também contribuiu com um contingente de 1.150 oficiais e soldados.
A operação na República Dominicana marcou uma reviravolta na política externa brasileira. Sob o regime militar, o Brasil alinhava-se integralmente à política hemisférica de Washington e rompia com a tradição de respeito aos princípios de soberania e autodeterminação nacionais. Na própria Reunião de Consulta, os representantes do México denunciaram a decisão da OEA, que, sob pretextos humanitários, oferecia cobertura legal para a ressurreição da velha política do "Big Stick". Hoje, na mesma ilha Hispaniola, mas no Haiti, o governo Lula prepara-se para imitar o general Castello Branco.


A presença [no Haiti] de tropas do maior país latino-americano assegura a imunidade política a Bush


O governo haitiano de Jean-Bertrand Aristide foi derrubado no dia 29 de fevereiro, por uma intervenção cirúrgica de forças americanas e francesas que se anteciparam ao aguardado confronto entre partidários do presidente e uma milícia de rebeldes armados. Os detalhes permanecem obscuros, mas há indícios de que as forças estrangeiras obrigaram Aristide a assinar uma carta de renúncia e o conduziram seqüestrado à República Centro-Africana. Um novo governo haitiano, instalado sob tutela franco-americana, solicitou à ONU o envio de forças de paz.
Aristide simbolizou, no Haiti, a resistência, a esperança, a traição e a decepção. Resistência: padre de esquerda, ligado à Teologia da Libertação, foi expulso da igreja, enfrentou a ditadura dos Duvalier e a milícia dos Tonton Macoute. Esperança: herói popular, elegeu-se presidente com esmagadora maioria, nas primeiras eleições democráticas do país, em 1990; foi derrubado pelos militares, mas retornou ao poder por meio da intervenção americana de 1994. Traição: no poder, transfigurou-se em cacique político autoritário e corrupto, cercado por máfias e protegido por gangues. Decepção: promoveu eleições fraudulentas em 2000, conquistando novo mandato e assegurando maioria parlamentar por meio de violência contra opositores.
Depois das eleições de 2000, a ajuda internacional secou e o dinheiro do narcotráfico completou a degradação das frágeis instituições haitianas. Do Partido Lavalas, de Aristide, desprenderam-se facções dissidentes, que se juntaram a antigos militares do Exército dos Duvalier e homens de negócios sediados na Flórida. Como galos de briga, governo e oposição engalfinharam-se, disputando os espólios do aparelho de Estado e as rendas da rota haitiana do tráfico.
Há dez anos, a administração Clinton apostou em Aristide para estabilizar o Haiti e interromper o fluxo dos "boat people" rumo aos EUA. Os neoconservadores de Bush, envolvidos com o Afeganistão e o Iraque, encontraram tempo para financiar a oposição a Aristide. O levante de um punhado de milicianos, que se dirigiam a uma capital entregue ao caos, forneceu o pretexto para a intervenção. O novo governo é fruto de uma articulação de Washington e Paris com a coleção de facções oposicionistas. Seu primeiro-ministro residia na Flórida e circulava nos jantares dos neoconservadores republicanos. O ministro da Defesa serviu, como general, no Exército dos Duvalier. Na milícia armada que promoveu o levante contam-se antigos Tonton Macoute e negociantes do narcotráfico.
Os EUA precisaram da França para promover a intervenção, pois, desde o Iraque, o unilateralismo americano é alvo da crítica da comunidade internacional. A França, fiel ao modelo da sua política africana, engajou-se na operação a fim de restaurar alguma influência na ex-colônia. Além disso, pretendia colocar um bálsamo nas relações franco-americanas, que sangram desde a invasão do Iraque. Mas a legitimação da intervenção depende, em última instância, da ONU e do engajamento dos países da América Latina. Aí é que entra o Brasil: a presença de tropas do maior país latino-americano, enviadas por um governo de esquerda, assegura a imunidade política a Bush.
A história da participação brasileira em operações de paz é um capítulo da política externa nacional escrito com as tintas da dignidade e da coragem. Em Angola, brasileiros a serviço da ONU ajudaram a interromper um morticínio de décadas. No Timor Leste, ajudaram a erguer das ruínas as instituições da nova nação. Em dezenas de lugares, protegeram inocentes e minoraram o sofrimento das populações. A página da desonra foi escrita na República Dominicana. Agora, outra vai ser escrita no Haiti.
O governo Lula, ao se associar à instalação ilegal de um regime mafioso no Haiti, está pagando a dívida que contraiu com Washington quando confraternizou com a ditadura cubana, no exato momento em que Fidel Castro fuzilava opositores e encarcerava dissidentes de consciência. Provavelmente também imagina que está pagando uma prestação do crediário da cadeira de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Mas a moeda que aliena é a dos valores e princípios da política externa nacional.

Demétrio Magnoli, 45, doutor em geografia humana pela USP, é editor do periódico "Mundo - Geografia e Política Internacional" e pesquisador do NADD-USP.


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