São Paulo, quinta-feira, 13 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma reação à altura

ANDRÉ SINGER

O governo brasileiro não poderia ficar inerte diante das ofensas à honra e à autoridade do presidente da República. Mas a decisão de cancelar o visto temporário de um correspondente do "New York Times" no Brasil não constitui nenhuma tentativa de cerceamento à liberdade de imprensa. Tanto é assim, que o jornal norte-americano está autorizado a enviar ao país, tão logo queira, o jornalista que bem entender para substituir o correspondente que teve seu visto cancelado.
Esse eventual substituto, junto com o outro correspondente do "New York Times", que permanece no Brasil, encontrará aqui, garantida pela Constituição Federal, a mais irrestrita liberdade de trabalho e de expressão, equivalente àquela que é assegurada aos jornalistas brasileiros.
Como se sabe, o Brasil é hoje um dos países mais livres do mundo no que diz respeito à liberdade de imprensa, e este governo tem um compromisso inarredável com essa conquista da humanidade, que é o direito de expressar o pensamento. As críticas mais duras, as revelações mais chocantes ou as brincadeiras apimentadas não sofrem nem sofrerão censura de nenhum tipo no Brasil.


A liberdade de imprensa não pode servir de pretexto para ser leniente com quem difama, injuria e calunia


Mais do que isso, as forças políticas que elegeram o governo Lula têm orgulho de haver participado ativamente das lutas dos anos 1970 e 1980, que nos permitiram chegar ao elevado grau de liberdade de imprensa existente no país. O credo democrático, que implica o respeito absoluto à liberdade de expressão, está na biografia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, bem como na sua presente ação governamental.
O que está em jogo aqui não é a liberdade de imprensa, e sim a responsabilidade necessária na utilização de um instrumento poderoso como é a divulgação de informações em um veículo de repercussão mundial. Do mesmo modo que a liberdade de exercer a medicina não pode impedir que se proíba de clinicar a um médico que deliberadamente mata seus pacientes, a liberdade de imprensa não pode servir de pretexto para ser leniente com quem difama, injuria e calunia. É por isso que os jornalistas, de acordo com a legislação brasileira, têm que responder na Justiça quando acusados de cometer um desses três tipos de crime.
A decisão do governo foi tomada de forma refletida e ponderada. Ao ter conhecimento da notícia, no sábado, 8 de maio, o governo aguardou quase 24 horas para ter noção exata do conteúdo do texto e da forma da publicação. Tratava-se de uma longa reportagem, que ocupava toda a metade superior de uma página dominical do "New York Times", acompanhada por foto do presidente na Oktoberfest.
O conteúdo era, em resumo, o seguinte: haveria um problema de governabilidade no Brasil, em decorrência do abuso de álcool pelo presidente da República. Em apoio a essa tese, eram apresentadas frases e piadas pinçadas aqui e ali, emitidas por fontes sem nenhuma confiabilidade para o caso. Além desses excertos, havia referências a improvisos do presidente, a suas relações familiares e a "histórias" supostamente "contadas" em Brasília. Enfim, um misto de invencionice, leviandade e má-fé apropriado a um obscuro tablóide sensacionalista, não ao "New York Times". Convém assinalar que nenhum veículo da grande imprensa brasileira acolheria texto daquele teor.
Mesmo quando constatado que a reportagem, publicada em um jornal de vasta repercussão e credibilidade internacional, trazia graves danos à imagem do Brasil e do presidente da República, com óbvios prejuízos para a política externa do país e para as nossas instituições, o governo decidiu aguardar antes de tomar uma medida. Determinou-se ao embaixador do Brasil em Washington que procurasse a direção do "New York Times", com vistas a alertar o jornal para a gravidade do erro de ter editado um texto incompatível com qualquer publicação séria. Esperava-se assim que, uma vez percebido o erro cometido, o jornal publicasse uma retratação que reparasse o dano infligido. Essa retratação poderia nos proteger de futuros ataques irresponsáveis à honra do presidente e do país.
Apenas quando ficou clara a indiferença do jornal norte-americano pelos danos produzidos ao Brasil, decidiu-se, 72 horas depois de a notícia ter começado a circular, pelo cancelamento do visto temporário do autor da referida reportagem. Se o jornal tivesse reparado o erro cometido, o governo teria aceitado as desculpas, ainda que elas dificilmente anulassem os prejuízos já causados. Diante da simples reiteração das calúnias publicadas, já que a porta-voz do "New York Times" considerou a reportagem "correta", tornou-se necessário tomar as medidas cabíveis.
A referida reportagem foi produzida por um estrangeiro e publicada fora do Brasil, longe, portanto, da competência da Justiça brasileira. Sendo assim, a alternativa compatível com a gravidade do caso foi a de suspender o visto do correspondente para restaurar um ambiente de responsabilidade e respeito no trato dos assuntos públicos brasileiros.
A liberdade de imprensa é um valor inquestionável para o governo Lula. Ao lado dela, também é dever do governo garantir o respeito ao Brasil e a suas instituições.

André Singer, 46, jornalista, doutor em ciência política pela USP, é o porta-voz da Presidência da República. Foi secretário de Redação da Folha (1986-88).


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