São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Mulheres, elas mesmas

MIGUEL SROUGI


Esses pequenos exemplos demonstram que eliminar as desigualdades de gênero é fundamental para produzir a prosperidade de uma nação


AS ÚLTIMAS leituras deixaram-me desconcertado. De acordo com relatório da ONU, há no mundo 1,1 bilhão de seres humanos vivendo em extrema pobreza (renda inferior a R$ 61 por mês), 800 milhões de pessoas vão dormir famintos ao final de cada dia e, a cada hora, morrem 1.200 crianças atingidas por desnutrição e doenças infecciosas já erradicadas nos países mais sérios.
Para aumentar o mal-estar, descobri num estudo da American Cancer Society que a injustiça social produz marcas inaceitáveis. Nos EUA, os ricos vivem mais, têm menos doenças, recebem os melhores tratamentos e morrem com mais conforto. O mal-estar fica quase insuportável quando imagino o que deve estar acontecendo no resto do mundo.
Ante estatísticas tão desalentadoras, a ONU organizou em 2000 o Encontro do Milênio, em que se definiram metas para, até 2015, reduzir pela metade a fome e a miséria. Como instrumentos, foram idealizadas ações em educação, saúde, preservação ambiental, acesso à tecnologia e, interessante, de valorização e participação igualitária da mulher na sociedade.
Pelo que eu sabia e, sobretudo, pelo que não sabia, resolvi explorar o papel social das mulheres nos países mais desassistidos. Descobri que elas são responsáveis por cerca de 66% do trabalho que sustenta as famílias, colhem de 60% a 80% do alimento da nação e são provedoras quase exclusivas da assistência a vulneráveis, crianças, doentes e idosos. Apesar disso, recebem só 5% ou 10% dos rendimentos do trabalho, de acordo com a Women's International Network.
Nessas mesmas sociedades, pais amedrontados com a violência física e sexual afastam suas filhas das escolas, gerando um enorme contingente de mulheres iletradas e fragilizadas.
Ademais, por carência absoluta de recursos destinados à saúde, uma quantidade indecente de mulheres morre durante ou após a gestação, número cerca de 125 vezes maior que na Europa desenvolvida. Por essa imperfeição, se, nos países prósperos, o momento do nascimento de um filho se transforma no dia mais feliz da vida de uma mulher, nos países pobres, o dia de um nascimento pode ser também o dia em que a mãe morre.
Além do resgate da dignidade humana, ações que valorizam as mulheres produzem avanços incomparáveis nas sociedades que as adotam.
Estudo realizado no Peru mostrou que as taxas de filhos escolarizados são 40% maiores quando a mãe é alfabetizada, em contraposição ao pai alfabetizado. Pesquisa na Guatemala mostra que, quando os proventos familiares são gerados e gerenciados pela mulher, e não pelo homem, as despesas com a alimentação dos filhos é 15 vezes menor. Segundo dados do Banco Mundial, para cada ano a mais de escolarização da mãe, o risco de mortalidade infantil diminui de nove em cada mil nascimentos.
Mais: empréstimos modestos concedidos pelo governo às mulheres de uma comunidade rural da Índia permitiram a criação de pequenos negócios e a emancipação das participantes. Paralelamente, a taxa de mulheres e meninas vítimas de abuso físico e sexual doméstico caiu de 49% para 7%. Por fim, segundo dados da ONU, programas educacionais de planejamento familiar em comunidades carentes diminuem o número de gestações de risco e reduzem de 20% a 35% os índices de mortalidade materna.
Esses pequenos exemplos demonstram que eliminar as desigualdades de gênero é fundamental para produzir a prosperidade de uma nação.
Para tanto, é imprescindível que se concedam às mulheres os mesmos direitos desfrutados pelos homens no trabalho, na propriedade e na política, que se facilite seu acesso à educação e à saúde, que se reduza sua vulnerabilidade à violência e, principalmente, que se conceda a elas o direito de controlar seu próprio destino. De quem depende isso? De todos.
Dos governos, que devem ter compromisso inegociável com a defesa da condição humana, combatendo com suas poderosas armas as indecências da pobreza e concedendo os direitos às mulheres. Da sociedade, que deve forjar nova construção social, em que a mulher não seja vista como mero instrumento de perpetuação da espécie. E de cada um de nós, que não pode perder a compaixão.
Comecei o texto afirmando-me desconcertado. Contribuiu para isso uma investida que fiz no "Aurélio", tentando compreender o significado da palavra "mulher". Fechei rapidamente o compêndio: dos 31 usos dessa palavra, 20 referiam-se à mulher como objeto sexual ou meretriz.
Perdôo o "Aurélio" e termino o texto reconfortado. Afinal, mulher se confunde, sobretudo, com a questão eterna da maternidade, o resgate da dignidade humana e a superação da miséria no mundo. Termino não só reconfortado mas, hoje, dirigindo um olhar de gratidão para a minha Ivone a para todas as Ivones do mundo.

MIGUEL SROUGI , 60, pós-graduado em urologia pela Universidade de Harvard (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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