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TENDÊNCIAS/DEBATES
Fazer a abolição de novo
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
A primeira abolição não resultou na emancipação econômica e educacional dos libertos. A segunda é para corrigir esse malogro
FAÇAMOS a abolição outra vez. A
primeira abolição não resultou
na emancipação econômica e
educacional dos libertos. A segunda
abolição é para corrigir esse malogro
fatal de nossa história, superado em
gravidade apenas pelo próprio mal da
escravatura. Só a partir dessa correção é que criaremos nós, os brasileiros de hoje, condições para que possa
o Brasil ser útil à humanidade e a si
mesmo. Tenhamos claros o problema, o perigo e a tarefa.
O problema é que a injustiça racial
continua a campear entre nós. Ao
campear, envenena tudo em nossa vida nacional. Negros ganham muito
menos do que brancos. Ocupam, com
grande desproporção, os lugares mais
subalternos e humilhantes na sociedade brasileira.
A única coisa que sempre foi, e continua a ser, barata no Brasil é o trabalho de negro ou de negra. Pouco
adianta discutir se são menos remunerados apenas porque ocupam as
funções mais baixas ou também porque são tratados desigualmente mesmo quando desempenham as mesmas funções que seus pares brancos.
A desigualdade dos acessos aos meios
da qualificação é tão radical que permite à discriminação -quase sempre
evasiva e ambivalente entre nós- esconder-se atrás do disfarce do tratamento igual.
É certo que essa injustiça se manifesta de maneira diferente de como se
manifestaria em países que evitaram
a miscigenação racial e o sincretismo
cultural. Como a fórmula tradicional
dos relacionamentos entre as pessoas
no Brasil foi a sentimentalização das
trocas desiguais -a mistura insistente da troca, da prepotência e da afeição-, as relações entre as raças foram
também banhadas nesse elixir. Para o
bem e para o mal.
O perigo é que nos deixemos seduzir por duas respostas erradas à problemática da abolição inacabada.
O primeiro erro seria interpretar a
miscigenação e a tolerância no Brasil
como êxitos em alcançar a democracia racial. Democracia racial é projeto, não realidade do povo brasileiro.
Miscigenação racial é estímulo para
que nos unamos, não garantia de
união nacional. Sincretismo cultural
é instrumento, não solução.
O segundo erro seria seguir o caminho dos Estados Unidos ao desvincular a reação contra a injustiça de raça
da luta contra a injustiça de classe. O
resultado dessa separação lá foi uma
política que ajudou a construir uma
burguesia negra, mas que deixou a
massa de negros pobres e desqualificados sem meios, sem lideranças e
sem rumo.
Melhor exemplo é o que os Estados
Unidos, no Sul derrotado, tentaram
fazer logo após a Guerra Civil, só que
por pouco tempo e sem suficiente
respaldo político: vincular a superação da discriminação racial a esforço
de reconstrução econômica.
A tarefa é dar conteúdo a tal vinculação agora no Brasil. E fazê-lo graças
à combinação de duas linhas de ação:
uma, superficial e contestadora; a outra, profunda e reconstrutora.
A contestação é para atacar o mecanismo que faz da distribuição desigual de oportunidades econômicas e
educativas o meio para a reprodução
da injustiça racial: usar o direito e os
tribunais para exigir primeiro das
maiores escolas e das maiores empresas e depois de empresas e escolas
menores que recrutem brasileiros
negros e mestiços. E que ajudem,
quando necessário, a qualificá-los.
A falta de candidatos qualificados,
longe de servir como justificativa, define tarefa que as maiores organizações privadas do país devem compartilhar com o Estado brasileiro.
A reconstrução é para mudar na
raiz as instituições e as práticas que
impedem o aprofundamento da
igualdade de oportunidades. Instrumentalizar as pequenas empresas
que representam a maior força de
nossa economia. Reformar o modelo
institucional das relações entre o trabalho e o capital no interesse da maioria excluída. E oferecer às crianças
pobres, desproporcionalmente negras, mais talentosas e esforçadas um
conjunto de apoios econômicos
abrangentes e de oportunidades acadêmicas extraordinárias que lhes permita se transformarem em vanguarda do mérito e abrir caminho para as
outras.
Nosso país está predestinado a se
engrandecer sem imperar. Para que
esse destino se consume, porém, terá
a nação de unir-se. E, para unir-se,
aprender a enfrentar, sem medo nem
rancor, e por sucessivos atos de despojamento e de desassombro, o legado da escravatura africana. Se fizer isso, o povo brasileiro fará justiça a si
mesmo. Passará a aceitar-se pelo que
é e pelo que pode vir a ser. Deixará de
temer sua própria grandeza.
ROBERTO MANGABEIRA UNGER, 61, professor titular
da Faculdade de Direito da Universidade Harvard (licenciado), é ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos e ex-colunista da Folha .
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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