|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Fantasia geopolítica
OTAVIO FRIAS FILHO
No livro de ficção política "1984",
escrito por George Orwell nos anos
40, o mundo aparece dividido em três
blocos: Oceania, Eurásia e Lestásia.
Embora adotem o mesmo sistema totalitário, esses blocos alternam-se em
constante beligerância, de modo que
cada qual está sempre em guerra com
algum dos outros e aliado ao terceiro.
Orwell pensava em Estados Unidos,
Rússia e China, mas idéias semelhantes estavam em voga na época. Num
artigo recente, publicado pela revista
"Foreign Affairs", o jornalista inglês
Charles Clover fala do renascimento
de teorias eurasianas na Rússia de hoje e as remete a um teórico do começo
do século, Halford Mackinder.
Esse geógrafo acreditava que o planeta estaria sempre dividido em terra
e mar. Quem controlasse a Eurásia
controlaria a principal massa terrestre
e estaria em linha de confronto com a
outra potência, a oceânica. Clover
mostra como idéias assim impregnam
o pós-comunismo na Rússia, aproximando esquerda e direita.
Como em toda teoria geopolítica,
existe muito de maluquice nesta, além
do peso exagerado que ela atribui à
geografia física. Governando, porém,
sobre um vulcão de ressentimento e
desagregação social, a liderança russa
parece predisposta a qualquer fantasia
escapista que permita exorcizar o desastre interno.
O que a guerra contra a Iugoslávia
reiterou é que o mundo dispõe de
uma Oceania, composta, mais ou menos como Orwell previu, por Estados
Unidos, Europa Ocidental e Japão;
sua face militar é a Otan. O outro
"posto" é que está vago. É muito difícil que a Rússia, no estado de desarticulação a que chegou, venha a recuperá-lo.
O mais plausível é que a China possa
reivindicá-lo, tornando-se o centro do
bloco "eurasiano" em redor do qual
orbitariam a própria Rússia, parte do
Islã e -menos provavelmente- a Índia. O bombardeio acidental da embaixada chinesa em Belgrado foi uma
insólita ocasião que o acaso ofereceu à
geopolítica do novo século.
Talvez esse episódio, que as autoridades chinesas utilizaram como válvula de suas tensões internas, esteja
destinado a servir de marco simbólico
de uma Segunda Guerra Fria, na qual
estaríamos entrando ainda sem saber.
Tudo isso é puramente especulativo,
mas toda força gera uma contraforça,
e a política não admite vácuo.
Por razões materiais e históricas o
Brasil faz parte da "Oceania", embora situado no segundo escalão. Ao
mesmo tempo, o porte da economia
brasileira dá ensejo a áreas tanto de
cooperação como de conflito com os
países desenvolvidos. Seus interesses
como país são complexos demais para
se refletir num alinhamento mecânico.
É possível que os formuladores do
Itamaraty tenham sido precipitados
ao apostar suas fichas num mundo
unipolar, centrado apenas nos Estados Unidos, ou "multipolar", no eufemismo que eles usam. Um apoio
mais criterioso (e um pouco mais de
atenção, talvez, à embaixada em Pequim) é prudência que não faria mal.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: A linda Inês Próximo Texto: Frases
Índice
|