São Paulo, Quinta-feira, 13 de Maio de 1999
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Fantasia geopolítica

OTAVIO FRIAS FILHO

No livro de ficção política "1984", escrito por George Orwell nos anos 40, o mundo aparece dividido em três blocos: Oceania, Eurásia e Lestásia. Embora adotem o mesmo sistema totalitário, esses blocos alternam-se em constante beligerância, de modo que cada qual está sempre em guerra com algum dos outros e aliado ao terceiro.
Orwell pensava em Estados Unidos, Rússia e China, mas idéias semelhantes estavam em voga na época. Num artigo recente, publicado pela revista "Foreign Affairs", o jornalista inglês Charles Clover fala do renascimento de teorias eurasianas na Rússia de hoje e as remete a um teórico do começo do século, Halford Mackinder.
Esse geógrafo acreditava que o planeta estaria sempre dividido em terra e mar. Quem controlasse a Eurásia controlaria a principal massa terrestre e estaria em linha de confronto com a outra potência, a oceânica. Clover mostra como idéias assim impregnam o pós-comunismo na Rússia, aproximando esquerda e direita.
Como em toda teoria geopolítica, existe muito de maluquice nesta, além do peso exagerado que ela atribui à geografia física. Governando, porém, sobre um vulcão de ressentimento e desagregação social, a liderança russa parece predisposta a qualquer fantasia escapista que permita exorcizar o desastre interno.
O que a guerra contra a Iugoslávia reiterou é que o mundo dispõe de uma Oceania, composta, mais ou menos como Orwell previu, por Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão; sua face militar é a Otan. O outro "posto" é que está vago. É muito difícil que a Rússia, no estado de desarticulação a que chegou, venha a recuperá-lo.
O mais plausível é que a China possa reivindicá-lo, tornando-se o centro do bloco "eurasiano" em redor do qual orbitariam a própria Rússia, parte do Islã e -menos provavelmente- a Índia. O bombardeio acidental da embaixada chinesa em Belgrado foi uma insólita ocasião que o acaso ofereceu à geopolítica do novo século.
Talvez esse episódio, que as autoridades chinesas utilizaram como válvula de suas tensões internas, esteja destinado a servir de marco simbólico de uma Segunda Guerra Fria, na qual estaríamos entrando ainda sem saber. Tudo isso é puramente especulativo, mas toda força gera uma contraforça, e a política não admite vácuo.
Por razões materiais e históricas o Brasil faz parte da "Oceania", embora situado no segundo escalão. Ao mesmo tempo, o porte da economia brasileira dá ensejo a áreas tanto de cooperação como de conflito com os países desenvolvidos. Seus interesses como país são complexos demais para se refletir num alinhamento mecânico.
É possível que os formuladores do Itamaraty tenham sido precipitados ao apostar suas fichas num mundo unipolar, centrado apenas nos Estados Unidos, ou "multipolar", no eufemismo que eles usam. Um apoio mais criterioso (e um pouco mais de atenção, talvez, à embaixada em Pequim) é prudência que não faria mal.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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