São Paulo, Quinta-feira, 13 de Maio de 1999
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Em torno das CPIs


Criou-se um ambiente policialesco, em que a população imagina que os interrogados pela CPI serão por ela julgados


REGINALDO DE CASTRO

Os recentes acontecimentos em torno das CPIs no Senado -a do sistema financeiro e a do Judiciário- induzem a reflexões preocupantes acerca do atual estágio da democracia e da maturidade institucional do país. O regime democrático, mais que um método de tomada de decisões por maioria, é um ambiente sistêmico, em que instituições e Poderes cumprem papéis específicos e definidos, monitorados por algo que permeia esse processo e que se convencionou chamar de ordem jurídica.
Assim, a democracia é, acima de tudo, o império da lei; tudo, sem exceção, se processa dentro de seus limites. Mesmo quando as evidências indicam prática de delito (e este, por sua gravidade, provoca repulsa pública), não se admite quebra de ritos e garantias processuais. Do contrário, relativiza-se o conceito da democracia e se comprometem fundamentos do Estado de Direito.
Por essa porta -e sempre em nome das melhores intenções- se insinuaram e se estabeleceram os regimes autoritários. Examinemos o caso Francisco Lopes. Não estão em pauta a pessoa física do ex-presidente do Banco Central ou os atos ilícitos de que está sendo acusado. A Ordem dos Advogados do Brasil quer, tanto quanto quem mais o queira, que se faça justiça, nesse e em todos os casos em pauta, punindo exemplarmente os faltosos.
Mas não há como deixar de identificar desrespeito a direitos civis elementares na sua prisão, decretada pelos senadores e, horas depois, revogada pelo Supremo Tribunal Federal (aumentando, ante uma platéia pouco politizada, a confusão institucional).
A lei garante a alguém nas condições de Lopes (que responde a inquérito criminal, teve sua casa invadida e a correspondência pessoal violada e apreendida) recusar-se a depor como testemunha, já que é réu. O STF não poderia ter outra atitude senão mandar soltá-lo. Ele foi punido pelos senadores não por se recusar a depor como testemunha, mas por não assinar o termo de compromisso da CPI. Ora, esse termo o obrigaria a eventualmente incriminar-se, abdicando de um direito que a lei lhe garante -e que tem de ser respeitado-, que é o de ficar em silêncio.
As garantias individuais previstas na Constituição são da maior importância. Além de assegurar direitos e deveres, estabelecem os papéis de instituições e Poderes no regime democrático. A CPI é um instrumento a serviço desse processo democrático; não pode ter seu uso distorcido. Cabe-lhe identificar desvios pontuais na administração pública, investigá-los e encaminhá-los ao Ministério Público, que formaliza a denúncia e a remete ao Poder Judiciário.
É apenas nesse âmbito que se julga e sentencia, garantindo pleno direito de defesa. Há fundados indícios de que foi cometido um crime? Pois cumpra-se o rito legal, com o encaminhamento das evidências ao Ministério Público. O que não se admite é que, em nome da performance política de alguns parlamentares, haja usurpação de atribuições e violação da ordem legal.
Quando se maltrata um advogado em pleno e legítimo exercício de suas atribuições, é a cidadania que está sendo agredida. A busca do espetáculo interfere na própria eficácia da CPI, que despreza a técnica investigativa mais elementar: uma testemunha não pode conhecer previamente o depoimento da outra (art. 210 do Código de Processo Penal). Pois a CPI coloca o depoimento das testemunhas no ar, em tempo real, desperdiçando a oportunidade de colher contradições entre as partes.
Também com relação à chamada CPI do Judiciário, há evidências de que se busca o espetáculo, para além de apurar desvios de conduta e crimes. Nenhuma das denúncias é nova. Algumas são bem antigas e já deveriam ter provocado consequências. Outras estão em tramitação na infindável burocracia judiciária. Se nada resulta das providências mencionadas, não é por deficiência da ordem jurídica, mas porque o Estado brasileiro não funciona.
O que se precisa exigir, com o máximo rigor, é que os organismos do Estado cumpram seu dever, sob pena de seus membros serem responsabilizados na forma da lei. A múltipla falência dos órgãos do Estado não pode servir de pretexto para que as atribuições dos Poderes, previstas na Constituição, sejam reciprocamente usurpadas; nem se deve permitir que tudo isso aconteça para abrilhantar um show político.
A CPI, que não pode julgar ninguém (muito menos o Judiciário), está tendo, apesar de todos os pesares -não se pode deixar de reconhecer-, um efeito positivo: a quebra do silêncio que, por temor, costuma cercar na mídia denúncias contra a magistratura. Não se admite mais, a esta altura, que haja áreas de intocabilidade na vida pública. Quem delinquir deve responder por seus atos, nos limites da lei.
A CPI está dando ampla difusão a delitos antigos, que haviam sido varridos para debaixo do tapete. Isso é bom. Inibe transgressores potenciais e permite que denúncias como a feita contra o ex-presidente do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo cheguem ao público. O que se deve evitar nas CPIs é que a sociedade seja levada a cultivar expectativas que não serão satisfeitas e resultarão em novas frustrações.
Criou-se um ambiente policialesco, em que a população imagina que os interrogados pela CPI serão por ela julgados, sentenciados e presos. Como nada disso ocorrerá, até porque essa não é a atribuição da CPI, a decepção será inevitável, resultando em maior desgaste para as instituições (inclusive, e sobretudo, para a instituição parlamentar).
A busca de performance, de quebra, faz com que se deixe de desfrutar de algo fundamental numa CPI: a formação de convicção dos legisladores para o aprimoramento da ordem jurídica. O que se tem, neste momento, é uma absoluta inversão de papéis: o Legislativo tornou-se polícia, o Judiciário está no banco dos réus e o Executivo ostenta nos olhos a venda da Justiça.


Reginaldo Oscar de Castro, 56, advogado, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).



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