São Paulo, domingo, 13 de junho de 2010

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Paixão nacional

Futebol brasileiro simboliza trajetória do país, desde a valorização da mestiçagem ao enfrentamento maduro de dificuldades e decepções

Discute-se até hoje o porquê de o futebol ter-se enraizado tão bem no Brasil, a ponto de configurar o principal fenômeno de psicologia coletiva no país e contribuir para o âmago da autoimagem nacional. Como costuma acontecer nos debates futebolísticos, essa não é uma discussão conclusiva.
Seria algum atavismo desenvolvido nos longos séculos de escravidão, como sugeriu Gilberto Freyre? Já que aos escravos era proibida a prática de qualquer luta, teriam levado a extremos sua habilidade para dançar e até lutar de forma dissimulada com as pernas, origem da capoeira e, quem sabe, da propensão ao futebol.
Ou será que o esporte de elite, importado por britânicos no fim do século 19, teria exercido apelo irresistível na mentalidade popular, incitando um desejo de emular o modelo prestigioso? Os historiadores do futebol ressaltam o papel dos primeiros gandulas, jovens que libertaram o futebol ao levá-lo dos ginásios engomados dos clubes elegantes de São Paulo e do Rio para as peladas de várzea e de rua nos bairros operários.
De toda forma, o futebol cristaliza, num amálgama com o samba, a síntese identitária do país. Sem prejuízo do que possa haver de folclórico ou mistificador em torno desse fato, é interessante percorrer toda a sua dimensão simbólica. Porque o futebol brasileiro, em vários aspectos, desdobra e representa o esforço do país para se constituir como nação moderna.
O reconhecimento de que somos um país mestiço e que nossa força deriva justamente da confluência genética e cultural -haverá maior revelação do que essa, reiterada pelo futebol a gerações de brasileiros? De Friedenreich a jogar de touca para esconder o "cabelo ruim" a Leônidas, já saudado com o suntuoso epíteto de "Diamante Negro", decorre a década de 1930, quando o futebol nacional foi tomado por profissionais (quase todos de origem negra e humilde) e pela primeira vez, na expressão que se tornaria clichê, "encantou o mundo".
E o que dizer do trauma de 1950, tão indelével no psiquismo de tantos brasileiros quanto incompreensível, na sua aparente leviandade, para quase todo estrangeiro? Naquela decepção devastadora, o futebol brasileiro se tornou adulto; uma nação inteira, em termos psicológicos, terá aprendido a temperar o princípio do prazer, próprio da infância, com o princípio da realidade.
Depois da retumbante sequência de 1958, 1962 e 1970, era como se os europeus aprendessem afinal a deter a inventividade do futebol brasileiro, e este fosse forçado a absorver novos rigores técnicos. Não tem sido outra a dialética entre o nosso futebol e o argentino e o outro polo -a Europa- que pesa nesse esporte hoje efetivamente global. Também nesse sentido o futebol tem um simbolismo que transcende os estádios.
Como não poderia deixar de ser, esta Folha deseja sorte à seleção brasileira na África do Sul. Que nossos jogadores possam acrescentar novos reflexos ao espelho da nação e que esta se reconheça na projeção internacional de seus exemplos notáveis de criação, trabalho de equipe, elegância, espírito esportivo e respeito pelo outro.


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