São Paulo, quarta-feira, 13 de agosto de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES O dilema do portador de doença rara
PEDRO CARLOS STELIAN
O que deve, então, embasar eticamente as ações governamentais na área da saúde? Motivações gerenciais estratégicas ou humanitárias? Citando os filósofos britânicos Jeremy Bentham e J. S. Mill, o dr. Kanamura sugere que a ação mais justa é a que for mais útil para o maior número de pessoas. Seria assim pelo menos do ponto de vista do gestor do sistema de saúde, treinado para "pensar a saúde no coletivo". Da ótica dos portadores de quaisquer doenças que possam tirar a vida -sejam raras ou endêmicas- o que conta é a sobrevivência -e não poderia ser de outra forma. Coloquemos o sr. gestor de saúde diante do dilema de ter que salvar o próprio filho ou abrir mão de sua vida em nome do coletivo (aliás, de que programa coletivo estamos falando?). Todos lutamos pela vida. Mais que isso, por uma vida com qualidade. O portador de doença rara, como é o caso do portador de Gaucher, tem o mesmo direito de sobreviver que tem o portador de qualquer outro mal ou o excluído social que tem fome. E não raro vamos encontrar o portador de Gaucher nessa dupla condição -portador e excluído social. Nesse caso, como o gestor priorizaria a demanda: primeiro mata a fome e depois cura a doença? De nada adianta a medicina proporcionar avanços nos tratamentos de doenças se eles não puderem chegar aos pacientes. Se o custo é alto, cabe aos gestores de saúde pública não abandonar à deriva os pacientes -sejam eles maioria ou minoria-, mas buscar alternativas que reduzam custos. De outro modo, resvalamos para a priorização do que politicamente é mais interessante ao gestor. Afinal, será que a questão de cuidar do que é raro interessa menos porque rende menos votos? Portador de doença rara é igual, também, a voto raro? A supremacia do coletivo sobre o subjetivo, colocada como argumento ético, descamba aqui para politicagem despida de qualquer pudor humanitário. Que o tratamento de Gaucher é comprovadamente eficaz não se discute. Não cabe o argumento de que se trata de uma possibilidade "remota de combater uma doença". O que os portadores de Gaucher reivindicam não é ser "prioridade" governamental. Pedem apenas que não sejam esquecidos, porque são poucos -cerca de 300 casos identificados no país. Hoje o atendimento se dá graças, sim, a liminares. Ao Executivo, os portadores de doenças raras parecem ser um grupo incômodo. Não há campanhas de esclarecimento sobre as doenças (Gaucher e outras); não há interesse em qualificar o atendimento nem empenho em baratear os custos. O que espera dos portadores de doenças raras o dr. Kanamura? Que abram mão do direito de viver em nome do coletivo? Lembramos que, além de chefe-de-gabinete da Secretaria de Saúde, é também médico e, como tal, deve atender ao código de ética de sua profissão, que diz, em seu art. 1º dos Princípios Fundamentais: "A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza". Pedro Carlos Stelian, 58, é presidente da Associação Paulista dos Portadores da Doença de Gaucher. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Otaviano Helene e Lighia B. H. Matsushigue: Ensino superior: público ou privado? Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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