São Paulo, segunda-feira, 13 de agosto de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

São Paulo recebe sua arquitetura de volta

SYLVIO BARROS SAWAYA


Como num passe de mágica, a cidade volta a ter sua arquitetura. A retirada das propagandas agigantadas fez retornar o que se perdera


DE REPENTE , como num passe de mágica, a cidade volta a ter sua arquitetura. A retirada dos grandes painéis de propaganda permitiu isso. Eram tão imensos que a medida provocou um impacto no uso da cidade e uma certa desorientação. As referências de percurso mudaram.
A medida não foi excessiva. Excessiva era a apropriação indevida do espaço público visual. A recomposição das fachadas começou imediatamente, sobretudo com o colorido intenso que vem surgindo. Velhas fachadas, muito trabalhadas, voltaram à luz; deterioradas, serão restauradas e, lindas, darão testemunhos de épocas passadas encobertas.
A Lei Cidade Limpa, além do grande impacto inicial gerado, significa o começo do cuidado maior da cidade em todos os seus lugares e deverá estender-se a outras manifestações, como os grafites, o tratamento dos espaços públicos, como praças e largos, e também o desenho das vias, o conforto dos pedestres, a arborização e os jardins, o mobiliário urbano, como os bancos, os recipientes de lixo e tudo o mais que fizer parte da vida em comum e de sua melhoria.
O que significa para nós a volta da arquitetura? É o surgimento da vida como ela é, do tamanho das pessoas e de seu cotidiano. São janelas do segundo piso que mostram gente morando sobre os comércios, são aberturas, balcões e mansardas que falam da rua ao se relacionar com ela.
A cidade fora tomada por máquinas mecânicas de circulação, ônibus, automóveis, transportes de cargas; suas laterais passaram a ser pontos de mensagens voltadas para esse fluxo.
Os pedestres nas ruas de uso intenso foram apinhados nas calçadas estreitas, espremidos em razão do funcionamento da máquina de circulação que passou a promover o consumo.
Os locais marcados pela dimensão humana de seu uso passaram a ser segmentos de canais de circulação indistintos e genéricos. A cidade, abandonada de seus lugares, se tornara apenas um sistema de fluxo e de captação de possíveis consumidores. A vida de seus habitantes passara a ser reduzida, fora enfatizada a idéia de que somos apenas pequenas peças de uma grande engrenagem.
A retirada das propagandas agigantadas trouxe de volta o que se perdera. Uma volta que vai exigir a criatividade de todos os envolvidos para recompor a riqueza do espaço urbano público dos cidadãos.
Quem trabalha com programação visual sabe que um ponto amarelo em um fundo preto chama mais atenção do que um texto avantajado. O colorismo recém-surgido, acompanhado de cuidados em manter as fachadas, pode ser o início de um trabalho comunitário em cada local para embelezá-la, torná-la mais aconchegante e, ao mesmo tempo, expressiva do que a própria comunidade é, quer ser e quer dizer a respeito de si mesma.
Novas maneiras de publicidade serão encontradas. O comércio e os serviços continuarão sendo valorizados. Aprenderemos juntos a cuidar melhor do que é nosso. Poderemos demonstrar melhor o amor que temos por nossa cidade.
As cidades são uma inovação humana que vem da Antiguidade. Fazem parte da revolução urbana surgida após a revolução agrícola e passaram por muitos sistemas políticos, sociais e econômicos. Atualmente, encontram-se em uma encruzilhada importante. Sua continuidade depende de seus cidadãos.
O mundo foi, a partir do surgimento das cidades, dividido em urbano e rural. No começo, uma grande vastidão natural e agrícola pontilhada por núcleos urbanizados. Hoje, o mundo é todo urbano, formado por redes de cidades, grandes eixos de circulação também urbanizados, com interstícios que compõem o espaço rural.
Fenômeno recente são as grandes aglomerações, as metrópoles. As cidades, centro de acúmulo de significados que organizam e direcionam o espaço circundante, podem deixar de existir em razão de uma extensão indistinta e anônima que forma um grande conjunto funcional.
As cidades só permanecerão se forem amadas, se forem valorizadas em seu patrimônio cultural, paisagístico e histórico, se forem específicas em cada um de seus lugares.
Mestre Milton Santos, nosso grande geógrafo, dizia: quem mora no lugar é a população pobre que nele se situa e sobrevive. Nós somos uma maioria nessa condição e, por isso mesmo, enquanto lutamos pela melhoria e pela emancipação dessa população, podemos contar com um grande contingente que quer e precisa de suas cidades.
Os fenômenos que vivemos, de concentração e surgimento de maiorias expressivas e desprivilegiadas nas cidades, exigem que as tratemos com o maior carinho e devoção. Esses fenômenos que se alastrarão no mundo todo têm aqui uma antecipação que precisa ser tratada com todo empenho e urgência.
É em boa hora que começa em São Paulo esse cuidado.

SYLVIO BARROS SAWAYA , doutor em arquitetura e urbanismo, é professor titular e diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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