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São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 2003

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BORIS FAUSTO

O mito cubano

Por que amplos setores da esquerda latino-americana continuam a apoiar o regime castrista, condenado pela esquerda européia de diferentes matizes? Por que, especificamente, o atual governo brasileiro revela um carinho, cercado de tantos cuidados e atenções, pela ditadura cubana?
Entre outras razões, a resposta me parece estar no fato de que a revolução cubana, dadas as características ideológicas e materiais da América Latina, gerou um mito político. A essência do mito contém uma história fabulosa, que começa no desembarque do Granma, em 1956, e termina com a entrada triunfal dos guerrilheiros em Havana (1959). Essa história fantástica -o triunfo de uma revolução que se supunha portadora dos ideais de justiça social e igualdade, num continente marcado por profundas injustiças materiais e morais- calou fundo no mundo e, sobretudo, na América Latina. Tanto mais que o êxito revolucionário ocorreu nas barbas dos Estados Unidos; o "imperialismo ianque" parecia mesmo não passar de um tigre de papel, como diziam os chineses de Mao.
Depois do triunfo, damos de frente com uma dura realidade. Castro instalou na ilha, passo a passo, um regime ditatorial, proibindo a livre manifestação do pensamento, prendendo e torturando não só os inimigos como também os divergentes. A lista dos perseguidos por razões políticas, por "comportamento desviante", por mesquinhas perseguições pessoais é bem conhecida.
No plano externo, depois de encantar parte da esquerda latino-americana com as ilusões da "exportação revolucionária", Castro aderiu ao bloco soviético em troca de favores para o açúcar e da importação subsidiada de petróleo. Permitiu a instalação da plataforma de mísseis em Cuba, que levou o mundo à beira de uma catástrofe nuclear, em 1962; apoiou a intervenção de Brejnev no Afeganistão e, bem pior do que isso, o esmagamento da Primavera de Praga pelos tanques soviéticos.
É certo que uma política estúpida dos Estados Unidos, dando ouvidos ao pior setor dos exilados cubanos, concorreu para a satelização. A fracassada invasão da ilha é um exemplo gritante, assim como o embargo econômico. Este serviu como mais uma justificativa para o governo cubano perpetuar a ditadura, não obstante o fato de que o bloqueio fosse furado pelos investimentos europeus e pela intensificação do turismo.
Os defensores da ditadura cubana exibem, como trunfo, os êxitos sociais no plano da saúde e da educação. Êxitos reais, embora, no terreno educativo, quando tanto se fala em qualidade, caiba perguntar se a doutrinação política, sem alternativas, constitui índice de educação adequada. Não faltam exemplos de gente que ascendeu culturalmente com a revolução, mas tratou de abandonar a ilha, levada por razões que, muitas vezes, não são materiais.
A pergunta crucial é, porém, a seguinte: estamos condenados, na América Latina, a embarcar no caminho das ditaduras, aceitando e até aplaudindo suas barbaridades como inevitáveis, para melhorar deprimentes indicadores sociais? Ou temos o direito de acreditar na compatibilidade entre justiça social e democracia, e assim lutar por esse caminho?


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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