São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Geografia da violência no Rio

LUIZ EDUARDO SOARES

No Estado do Rio, em 2003, 6.624 pessoas foram assassinadas, 179 foram mortas em latrocínios e 1.195 perderam a vida por conta de ações policiais, a maioria das quais em condições que sugerem extermínio. As mortes provocadas por ações policiais cresceram 298,3% nos últimos sete anos. Chegamos, portanto, ao espantoso número de 7.998 vítimas letais da violência -53,8 por 100 mil habitantes. Exatamente o dobro da média brasileira.
Isso significa que 18 pessoas foram assassinadas no Estado do Rio diariamente, oito das quais na capital. A maioria era jovem, do sexo masculino, com entre 15 e 24 anos, pobres e negros, moradores das áreas mais pobres da cidade. Trata-se de uma tragédia cuja dimensão humana é incomensurável e cujas conseqüências são extensas e profundas nos mais diversos âmbitos, da economia à psicologia coletiva. E é espantoso como nos resignamos e continuamos a tratar esse tema como só mais um entre tantos que nos ocupam e preocupam.
Na capital, o total de crimes letais chegou a 3.470. Se considerarmos apenas a cidade do Rio e adicionarmos os crimes não-letais contra a pessoa -ou seja, aquelas modalidades de violência que não matam, mas agridem a integridade física, causando danos ao corpo e à mente por vezes irreparáveis-, teremos de acrescentar a essa contabilidade mórbida os estupros (363), as tentativas de homicídio (1.852) e as lesões corporais dolosas (25.552 vítimas).


Em 2003, 18 pessoas foram assassinadas no Estado do Rio diariamente -uma tragédia cuja dimensão humana é incomensurável
Mesmo deixando de lado a violência intersubjetiva, que não atinge o corpo, mas fere o espírito, como as manifestações racistas, homofóbicas e misóginas, escalamos patamares elevados de barbárie: 31.237 cariocas foram vitimados em 2003. Esse número extraordinário equivale a mais de 85 casos por dia, ou cerca de um caso a cada 15 minutos.
Como houve 80.506 roubos em 2003 -afora a imensa maioria dos não registrados-, a experiência da vitimização foi ainda mais extensa e difusa. Mesmo visando a subtração do patrimônio, o roubo envolve violência, risco e medo. Essa vivência nunca se esgota com a conclusão do fato criminal. Ficam o susto, o sentimento de impotência e insegurança, a retração nos contatos com desconhecidos, os muros internos erguidos pelo medo, que aprofundam abismos sociais e tendem a nos isolar.
Considerando famílias de cinco membros -na suposição de que os episódios referidos não foram cumulativos, do ponto de vista das unidades domésticas-, poder-se-ia dizer que 558,7 mil cariocas vivenciaram, direta e indiretamente, no ano de 2003, experiências violentas. Isso significa que, na cidade do Rio de Janeiro, ocorre mais de um crime grave por minuto.
Quando nos aproximamos com mais atenção das informações, descobrimos um fato surpreendente: a cidade do Rio de Janeiro contém diferentes cidades dentro de si. Pensar o Rio pela média impede a compreensão dessa complexidade. Do ponto de vista da violência criminal, há uma proliferação de realidades inteiramente diversas -o mesmo diagnóstico poderia se aplicar a outras esferas da sociedade carioca, como propõe Jaílson Souza.
O bairro de Inhaúma, por exemplo, apresentou, em 2003, uma taxa exorbitante de homicídios dolosos por 100 mil habitantes: 168,4. Enquanto isso, a região composta por Lagoa, Jardim Botânico, Gávea, Vidigal, São Conrado e Rocinha apresentou uma taxa européia: 2,1. Catumbi, Rio Comprido, Cidade Nova e Estácio atingiram 126,5. Praça Mauá, praça da República, Saúde, Camboa e Santo Cristo chegaram a 140,3. Por outro lado, Flamengo, Glória, Laranjeiras, Catete e Cosme Velho não ultrapassaram 6,2. Leblon e Ipanema não superaram 8,8. Copacabana e Leme tiveram 6,6 casos por 100 mil habitantes.
A informação que melhor sintetiza a diversidade de realidades é a seguinte: as mesmas diferenças e concentrações observadas quanto ao homicídio doloso reproduzem-se na geografia de quase todos os demais crimes. Ou seja, ao contrário do que supõe o senso comum e do que acontece mundo afora, as áreas mais ricas não são aquelas onde ocorrem mais crimes contra o patrimônio. Tanto esses como os crimes contra a vida são perpetrados com maior freqüência em regiões menos nobres da cidade.
Os roubos concentram-se do mesmo modo que os crimes contra a pessoa e os letais: houve, em 2003, 11.178 vítimas de roubo por 100 mil habitantes na região composta pelas praças Mauá e da República e por Saúde, Gamboa e Santo Cristo. Na zona sul, a média aproximada foi um décimo daquela: não ultrapassou 1.115 vítimas por 100 mil habitantes -um número extremamente elevado, mas muito inferior à média da cidade. A única exceção foram os roubos a residência, por motivos evidentes. Ou seja, a cidade pobre está mais exposta até mesmo aos roubos do que a cidade rica.
Conclui-se que os recursos de proteção públicos -particularmente o policiamento- distribuem-se de forma nada eqüitativa e não guardam nenhuma relação com as taxas reais de risco. Esse é o sintoma mais ostensivo e eloqüente da politização da segurança pública: a hierarquia de relevância dos alvos da proteção tem sido definida segundo o critério da visibilidade (isto é, de sua capacidade de mobilizar o interesse da mídia e sensibilizar a opinião pública).
Se não estivéssemos anestesiados, essa realidade seria escandalosa.
(agradeço a Doriam Borges a colaboração fundamental)
Luiz Eduardo Soares, 50, antropólogo, é professor de ciência política e antropologia na Uerj e diretor do Instituto Pró-Susp (Sistema Único de Segurança Pública). Foi secretário nacional de Segurança Pública (2003) e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro (1999-2000). É autor de "Meu Casaco de General" (Companhia das Letras).


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