São Paulo, terça-feira, 13 de novembro de 2007

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MARCOS NOBRE

Tão longe, tão perto

O SÉCULO 20 foi ontem. Mas parece tão longe quanto um parque de dinossauros. Na última semana, a Revolução Russa completou 90 anos, a queda do Muro de Berlim, 18, e a longa noite dos cristais (série de ataques nazistas contra judeus), 69. A revolução da informática que se consolidou na década de 1990 ajudou em muito a dramatizar esses eventos cruciais como episódios anômalos, como desvios arcaicos. Pensar assim é bem mais cômodo do que aceitar que o autoritarismo é uma ameaça real, sempre presente. Também a ideologia do progresso do início do século 20 tinha já feito isso com os "desvios" do século anterior. E deu no que se sabe. As derrotas do nazismo nos campos de batalha e da União Soviética na chamada Guerra Fria são muitas vezes apresentadas como uma vitória do capitalismo e da democracia. Nessa versão, capitalismo e democracia surgem como se sempre tivessem andado juntos. Só que a história é bem diferente. E não só porque a Alemanha nazista era também capitalista. Não há teórico liberal até o século 19 que tenha proposto o voto universal. Pelo contrário, essa idéia sempre foi rejeitada pelo temor de que pudesse destruir o próprio capitalismo e os valores liberais. A democracia de massas e os direitos sociais que se conseguiu alcançar em cada país foram conquistas do movimento operário. Foi no embate contra o liberalismo econômico e o elitismo político contra os Estados autoritários, como a Alemanha nazista e a União Soviética, que surgiram as instituições que hoje formam o Estado democrático de Direito. No momento atual, a direita política se comporta como um exorcista que cria seus próprios fantasmas. Promove um "revival" do anticomunismo, por exemplo, como se ainda existissem defensores relevantes do finado socialismo soviético. Em vez de combater ameaças reais à democracia, como as desigualdades e o preconceito, associa qualquer mínimo movimento contra a lógica desigual do capitalismo como antidemocrático e atrasado. A história do século 20 é usada como palco para essa encenação. Mas não só. O passado também é utilizado positivamente para legitimar um ou outro fantasma, conforme a preferência. Como no caso da recente beatificação pelo papa Bento 16 de centenas de religiosos mortos durante a Guerra Civil Espanhola, iniciada há 71 anos. Como se essas pessoas tivessem morrido simplesmente porque eram religiosas, e não porque apoiavam a instalação de um regime fascista. A ditadura de Franco na Espanha durou até 1975. Tudo somado, o século 20 não está tão longe assim.


MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta coluna.


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