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TENDÊNCIAS/DEBATES
O projeto da Lei de Biossegurança tira a autonomia da CTNBio?
SIM
Sobre segurança e responsabilidade
FERNANDO REINACH
Pela legislação atual, a CTNBio
(Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança) é composta em sua
maioria por cientistas. A missão da
CTNBio é produzir pareceres conclusivos sobre a segurança de produtos e atividades relacionados à biotecnologia.
O projeto de lei em tramitação no
Congresso prevê a inclusão na CTNBio
de um número maior de representantes
da sociedade civil, organizações sociais
e ONGs. Os cientistas e técnicos deixarão de ocupar a maioria dos assentos.
Além disso, o projeto de lei altera a natureza jurídica dos pareceres, que deixarão de ser conclusivos. Assim, a CTNBio
passará a ser um órgão consultivo, cabendo a decisão final sobre a segurança
das atividades relacionadas à biotecnologia aos diversos ministérios.
Essas alterações podem levar a uma
politização do processo de análise de
risco e, consequentemente, a uma diminuição dos níveis de segurança dos produtos derivados da biotecnologia.
Atualmente é praticamente impossível que toda a população compreenda e
avalie os riscos e os benefícios de cada
novo produto ou tecnologia. Todos nós
utilizamos produtos cujo funcionamento desconhecemos. Poucos sabem os
detalhes do funcionamento e os riscos
de um forno de microondas, por exemplo. Microondas podem ser letais para o
ser humano e nem por isso deixamos de
nos beneficiar de sua tecnologia.
Todo produto tem associado a si um
risco. Pior, o risco pode ser estimado,
mas nunca é totalmente conhecido. É
necessário avaliar os riscos de cada tecnologia constantemente. Para garantir
que os riscos de cada produto sejam
identificados e quantificados de maneira confiável, foram criadas as comissões
técnicas de segurança. Elas operam em
diversos órgãos e analisam os produtos
criados com o uso de diferentes tecnologias. Em geral, são compostas por especialistas que são responsabilizados legalmente por seus pareceres. É um trabalho de grande responsabilidade. Foram comissões dessa natureza que determinaram que fornos de microondas
são seguros desde que incluam um mecanismo que interrompa a emissão das
microondas com a porta aberta. Foram
comissões desse tipo que consideraram
seguro comprar aspirina sem receita.
A experiência mundial mostra que as
comissões técnicas de segurança são o
melhor mecanismo para avaliar o balanço apropriado entre os risco e as vantagens de cada novo produto. Elas não
são infalíveis e muitos erros já foram cometidos. Talvez o mais famoso seja a liberação da talidomida, que diminui o
enjôo durante a gravidez, mas resulta
no nascimento de crianças deformadas.
Na maioria dos países, os pareceres
dessas comissões são conclusivos somente no que se refere à segurança.
Quando uma comissão de segurança
atesta que um produto ou procedimento é seguro, isso não implica que ele deva ser liberado ou utilizado. Existem
produtos considerados seguros que não
são liberados por razões éticas, morais,
políticas, estratégicas ou até econômicas. Esses aspectos, por não serem exclusivamente técnicos, normalmente ficam fora do escopo de atuação das comissões técnicas de segurança e são decididos nas esferas políticas.
No processo decisório é extremamente importante separar a avaliação de risco de um dado produto da decisão política e estratégica da adoção desse produto. Quando essas duas instâncias são
separadas, a avaliação do risco é de melhor qualidade, pois é regida estritamente por critérios técnicos. Vejamos o
caso da soja geneticamente modificada.
A CTNBio considerou-a segura. Cabe
ao Ministério da Agricultura e ao governo federal decidir se é estrategicamente
interessante liberar o plantio dela em
território nacional ou não.
Outra característica importante na
operação das comissões técnicas é a exigência de que elas se envolvam na regulamentação das atividades tecnológicas
e científicas desde o início do desenvolvimento dos produtos. Isso permite que
suas decisões sejam mais confiáveis.
Ao retirar dos cientistas a maioria dos
assentos na CTNBio, o novo projeto de
lei desfigura totalmente a comissão, tirando seu caráter técnico, transformando-a em um órgão político. Acredito
que a presença de representantes dos
diversos setores da sociedade é bem-vinda e necessária para o bom funcionamento de uma comissão técnica como é a CTNBio. Os representantes de
ministérios e da sociedade civil trazem
para o âmbito da comissão as preocupações dos diversos órgãos do Poder
Executivo e da sociedade. Entretanto
acredito ser discutível se deveriam ter
direito a voto, pois, se o tiverem, passarão a ser legalmente responsáveis pelos
pareceres técnicos da comissão.
Finalmente, o projeto de lei destrói totalmente a confiabilidade do sistema de
segurança ao retirar o caráter conclusivo dos pareceres da CTNBio. Se implantado, esse novo mecanismo vai diluir
entre vários órgãos e ministérios a responsabilidade pelas certificações de segurança. Nunca saberemos quem tomou ou como foi tomada uma decisão
de liberação ou não de um produto. Isso
torna impossível garantir a qualidade
das decisões ou determinar a responsabilidade por eventuais erros. Esse é um
risco grande demais para a sociedade.
Fernando Reinach, 47, doutor em biologia molecular, é professor titular do Instituto de Química da USP e diretor-executivo da Votorantim
Ventures. Foi presidente da CTNBio em 1999.
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