São Paulo, sábado, 13 de dezembro de 2008

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RUY CASTRO

O coração como arma

RIO DE JANEIRO - Na noite de 13 de dezembro de 1968, Paulo Francis tomou um avião em Nova York e mandou tocar para o Rio, onde morava. Enquanto ele lia Geoffrey Barraclough a 30 mil pés, os militares faziam horrores por aqui -fechado o Congresso e abolido o habeas corpus, estavam indo buscar em casa quem eles consideravam perigosos para o regime: políticos, editores, poetas, repórteres, caricaturistas.
Na manhã de 14, ao pousar no Galeão e aberta a porta do avião, Francis teria posto o pé na escadinha e, de nariz em pé, perguntado sorridente, para ninguém em particular: "E aí, como se comportou o Brasil na minha ausência?". Em resposta, mãos truculentas o teriam algemado e levado preso para o quartel. Segundo outra versão, mais correta, Francis só foi preso no dia seguinte, 15, de pijama, em seu apartamento em Ipanema.
Hipótese também mais heróica, porque, já sabendo da prisão de tantos de seus amigos, poderia muito bem ter ido se esconder em um sítio na roça. Mas preferiu ficar e ver no que dava. Deu cana, da qual só foi libertado no Natal, por interferência de outro amigo, ligado ao general Sizeno Sarmento.
Eu próprio, julgando-me um alvo, também andei escondido por alguns dias. Mas saí da toca e estive com Francis logo depois que o soltaram. Perguntei-lhe: "Foi torturado?". E ele: "Barbaramente. O carcereiro escutava Vandeca [a cantora Wanderléa] pelo radinho de pilha o dia inteiro".
Por várias razões, é Francis que me vem à cabeça em todo aniversário do AI-5. Mas, desta vez, há mais um motivo: o belo documentário "Caro Francis", que acaba de sair, produzido por Nelson Hoineff. É o retrato de um homem cuja principal arma retórica não era a inteligência, a mordacidade ou o destempero verbal, mas -agora ficou claro- o coração.


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