São Paulo, quarta-feira, 14 de janeiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Lei Rouanet de roupa nova

JORGE FELIX

No primeiro ano do novo governo, a área cultural esteve também sujeita, assim como a social, a previdenciária e a educacional, entre outras, a cenas típicas de um pastelão. O que se viu foi um "clown" desengonçado tentando vestir um "black tie" de aluguel. Tamanho foi o desconforto, que acabou dando razão a muitos que defendiam a idéia de que quem nunca usou rigor deve permanecer distante da gravata borboleta. Exagero. Mas o governo deu motivos de sobra.
A questão cultural passou a ser um assunto de Estado tão importante que mereceu ser tratada no próprio Palácio do Planalto, por um ministro do núcleo mais próximo do presidente. O absurdo foi devida e amplamente criticado. Agora, depois de uma visita ao alfaiate mais próximo, o governo prepara-se para caber no novo figurino. Na área cultural, o debate apresentado para 2004 será a revisão das leis de incentivo fiscal, sobretudo a Lei Rouanet (8.313/91). O objetivo aqui é emprestar alguma colaboração a essa discussão.
Antes de tudo, é justo lembrar a área econômica, à qual o figurino coube como se feito por encomenda. Em sentido inverso ao esforço fiscal, patrocinado pela competência insaciável da Receita Federal, o governo pretende manter sua política cultural baseada na renúncia fiscal. Ou seja, enquanto o brasileiro assalariado é punido com mais tributos e alíquotas leoninas, o governo acredita ser justo estimular a área cultural em troca de uma arrecadação menor. Perfeito. É escolha. Mas isso implica grande responsabilidade por parte de quem o governo irá permitir gozar desse benefício e, sobretudo, do beneficiado. Aí cabe a pergunta: a quem essas leis incentivam?


O maior equívoco das leis de incentivo fiscal é jamais diferenciar os autores novos dos já consagrados


As maiores críticas à Lei Rouanet são o caráter regionalista, que privilegia o Sudeste em detrimento dos Estados mais carentes em produções e recursos para a cultura. As empresas dispostas a abrir suas contas, em tempos de balanços tão discutíveis aí pelo mundo afora, só se submeterão à possibilidade de uma devassa da Receita (o que geralmente ocorre, no bom sentido) se o investimento apresentar o menor risco. E, como o país já virou especialista em avaliação de risco, sabe-se que isso significa Rio de Janeiro e São Paulo. Nunca houve uma obrigatoriedade de a empresa destinar tantos por cento de sua renúncia fiscal aos Estados mais pobres ou a grupos regionais do Nordeste.
Esses pontos, felizmente, já estão amadurecidos por quem está discutindo o assunto e, certamente, serão modificados. O maior equívoco das leis de incentivo fiscal, no entanto, é jamais diferenciar os autores novos dos já consagrados. As leis foram redigidas ignorando o que deveria ser a principal preocupação do Programa Nacional de Apoio à Cultura: incentivar o surgimento de novos valores.
Embora amparada na Lei Rouanet, uma produção de um autor ou diretor estreante tem grande dificuldade de concorrer com produções de autores consagrados ou premiados e até de estrangeiros. Os patrocinadores, ao avaliarem seus mecenatos, são insensíveis a esse argumento. É evidente. Uma empresa interessada em patrocinar uma produção teatral receberá o mesmo percentual de renúncia fiscal na produção de um novato ou na de um autor famoso. Isto é, para o governo, um estreante e Shakespeare têm o mesmo valor.
As empresas estão preocupadas com a exposição de suas marcas, qual a expectativa de público, qual o teatro. O critério é o currículo. E elas estão certas. Errado está o governo, que abre mão de seus impostos sem traçar estratégia. Na iniciativa privada é diferente. Um autor ou cineasta reconhecido, premiado, com quem a empresa terá, sem correr grande risco, o retorno esperado, deve receber menos incentivo fiscal que um autor inédito. Um autor estrangeiro, no caso do teatro, deve receber menos ainda. Tem de haver um escalonamento.
Essa distinção é fundamental porque as leis são de fomento cultural, e nunca podem ser de sustentação de empresas de marketing. Por falar nisso, deve-se estabelecer um valor para esses escritórios cobrarem por um registro na Lei Rouanet. Atualmente há gente no mercado que pede de R$ 3.000 a R$ 5.000 só para cadastrar o projeto. Isso deveria ser crime, pois os custos desse processo (graças ao excelente trabalho do Ministério da Cultura e da Receita Federal) é de, no máximo, R$ 100.
As primeiras notícias sobre a revisão da Lei Rouanet são estimulantes. A começar do que já foi divulgado nesta Folha -que as empresas, para se beneficiarem da isenção, terão de patrocinar outro projeto sem dispor de renúncia de impostos. O governo, assim, estabelece a tão discutida contrapartida social.
Uma atriz consagrada montou, recentemente, um texto estrangeiro usando a lei e achou-se no direito de bradar contra a meia entrada para estudantes. Ela acredita que isso é responsabilidade do governo. E é. O governo deveria obrigar o artista que recebe incentivo fiscal a devolver ao cidadão essa ajuda estatal.
Estimular a formação de platéia, o artista novo e levar a cultura a um Brasil distante deve ser a roupa correta para o governo acertar na etiqueta social.

Jorge Felix, 36, jornalista, é autor de teatro e sócio da Editora Barcarolla.


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