São Paulo, sexta-feira, 14 de janeiro de 2011 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros
TENDÊNCIAS/DEBATES Erradicando a fome de conhecimento ALEXANDRE HANNUD ABDO e NÉVIO CARLOS DE ALARCÃO
De todos os sonhos humanos, há um que perdura e orienta o avanço da civilização, se não mesmo o define: o de que cada indivíduo compartilhe livremente a soma de todo o conhecimento. Essa ideia dá vida à ciência, às humanidades, à política, ao jornalismo e a tantas outras atividades voltadas ao bem público, pois reflete o caráter último colaborativo e universal do conhecer. O conhecimento deriva do contraste de ideias e experiências, alimenta-se de compartilharmos nossas diferenças. Reconhecemos esse sonho, ao longo da história, nas eras que associamos ao ideal humano e vemo-lo negado nos períodos de injustiça e censura. Há dez anos, completados amanhã, miríades de pessoas diversas em suas línguas e nacionalidades encontram-se todos os dias em um mesmo endereço para expandir e concretizar tal sonho. Lendo, escrevendo, discutindo, fotografando e recentemente filmando verbetes na Wikipédia. No dia 15 de janeiro de 2001 surgia a enciclopédia on-line que qualquer um pode editar. Poucos anos depois, nasce dela o Movimento Wikimedia, que deu origem a outros projetos, como o Wikcionário e o Wikilivros. Hoje, mais de uma centena de línguas têm suas Wikipédias interligadas. Dentre elas, o português é a oitava maior, com 666 mil artigos. O guarani, com menos falantes alfabetizados e informatizados, tem 1.300 verbetes. E muitos brasileiros também contribuem na Wikipédia em inglês, já com mais de 3,5 milhões de tópicos, tornada um amálgama dos povos pela sua condição de "lingua franca". Persistem, entretanto, mal-entendidos sobre a Wikipédia. Tende-se a interpretar seu bordão "a enciclopédia livre" como uma ausência de regras. Pelo contrário, ela é regida por princípios e normas, e cada contribuidor compartilha igual responsabilidade em zelar por eles. É dita livre justamente por um desses princípios, o de que o conhecimento ali contido possa ser recombinado sem restrições em outras obras, desde que preservada nelas essa mesma liberdade. Outro equívoco difundido é o de que a Wikipédia existe em oposição à imprensa ou à academia. Ignora-se aí que sua produção, pelos princípios da verificabilidade e da imparcialidade, depende dos processos de apuração e relevância executados por estas, que fornecem as fontes citadas em cada artigo. Seus editores são voluntários, quer corrijam uma palavra, quer escrevam um artigo, e determinam por si onde e quanto contribuir. Procedentes de variadas camadas sociais e ocupações, suas motivações são igualmente diversas. Mas, dentre elas, uma recente pesquisa conduzida pela Fundação Wikimedia, a organização criada para manter a infraestrutura do projeto, revelou que fazer parte de uma causa maior e se divertir são razões universais. A mesma pesquisa mostrou que, infelizmente, há significativamente menos editoras mulheres, o que expõe a enciclopédia ao risco de um viés masculino. Pelo lado positivo, reconhecido isso, mais mulheres podem se interessar em participar. A grandiosidade e a abertura da Wikipédia nos ensinam muitas lições sobre confiança e ousadia na construção do conhecimento, quando lá descobrimos jovens, ainda no ensino fundamental, fazendo contribuições relevantes e construtivas ao lado de universitários, trabalhadores e aposentados. Mas seu caráter coletivo também expõe nossa condição humana, seus conflitos inerentes e como normas técnicas e sociais servem para mediar essas diferenças e torná-las produtivas. Nisso, participar desse sonho é também uma lição de vida e de ética, um aprendizado sobre nós, unidos em sociedade. ALEXANDRE HANNUD ABDO, 29, cientista molecular e doutor em física pela USP, e NÉVIO CARLOS DE ALARCÃO, 52, poeta e funcionário aposentado do Banco do Brasil, editam a Wikipédia e são voluntários do Movimento Wikimedia no Brasil. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br Texto Anterior: José Sarney: Língua e ferrovia Próximo Texto: Carlos Salgado: A seleção movida a álcool Índice | Comunicar Erros |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |