São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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ALÉM DA ELEIÇÃO

A ONU agiu relativamente conforme o esperado ao afirmar que é favorável à realização de eleições diretas no Iraque, mas que é impraticável organizar um pleito direto até o fim de junho. A avaliação da missão das Nações Unidas na prática referenda a posição norte-americana de transferir o poder para um governo interino iraquiano escolhido indiretamente. O presidente George W. Bush até já marcou data para a "entrega": 30 de junho.
Quem não gostou muito das declarações do líder da missão das Nações Unidas, Lakhdar Brahimi, foi o aiatolá Ali al Sistani, uma das principais lideranças xiitas do Iraque. Al Sistani vem insistindo enfaticamente na realização de eleições diretas já. Suas razões são óbvias: os xiitas correspondem a cerca de 60% da população iraquiana e tenderiam a votar monoliticamente.
Se o plano de Washington era criar a primeira democracia árabe no Oriente Médio, Bush deveria ter invadido um país menos multifacetado do que o Iraque. Com efeito, a complexa configuração étnico-religiosa ali existente -que congrega árabes xiitas, árabes sunitas, curdos e persas, para não mencionar as pequenas minorias cristã e turcomena- torna bem mais complexa a elaboração de um pacto federativo, que, logicamente, deveria anteceder a realização de um pleito.
Nunca é demais recordar: eleições são apenas uma parte da democracia, regime que, para prosperar, exige mais. É preciso erguer um arcabouço institucional que estabeleça, entre outras prioridades, uma independência mais ou menos harmônica entre os Poderes, o respeito a direitos de minorias e a distribuição de competências e responsabilidades entre os vários grupos e regiões que formam o país. É nesse último quesito que se podem esperar problemas mais agudos.
Por constituírem a maioria da população, os xiitas podem perfeitamente conquistar a maior fatia do poder, mas isso não significa que curdos e sunitas devam ficar alijados das decisões -ou tiranicamente submetidos à maioria. As diferenças históricas entre os vários grupos e as terríveis agressões que o regime de Saddam Hussein impôs a xiitas e curdos sugerem uma busca por vingança que levaria à perseguição contra os sunitas, a facção dominante até a queda do ditador.
Há mais. Que grau de independência se deve dar aos grupos minoritários? Conceder muita autonomia aos curdos pode gerar, entre outras complicações, um problema com a Turquia, cuja minoria curda também acalenta sonhos separatistas.
Criar uma democracia depois de décadas de sangrenta ditadura não é tarefa fácil. No Iraque, com o agravante dos vários grupos étnicos e religiosos, o desafio é ainda maior.


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