|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Guga e a superação
JOÃO CARLOS MARTINS
Após um problema físico, jamais pensou em desistir. Nesse momento, começou a colecionar as vitórias mais importantes da sua carreira
APÓS UM concerto que regi com
a minha Bachiana em nossa
turnê nacional na cidade de
Curitiba ao final, como sempre faço,
executei ao piano uma peça de Bach,
com os três dedos que posso utilizar.
Neste momento procuro colocar o
meu coração em cada nota e, inúmeras pessoas, muitas delas com algum
problema físico, me procuram dizendo da importância que aquele momento teve em suas vidas.
Uma dessas pessoas foi Alice, mãe
de Gustavo Kuerten, que viajou de
Florianópolis para assistir ao concerto. Disse-me ela que chorou bastante
no instante da apresentação, mas que
estava feliz de presenciar uma cena
que servia de inspiração para o seu filho, o genial Guga.
Na última terça, ao ver pela televisão a partida do nosso eterno campeão na Costa do Sauípe, devolvi as lágrimas da Alice e as do próprio Guga,
certamente com juros e correção monetária, pelo que ele está significando
para todo o Brasil, não como o vitorioso tenista das quadras, mas como
exemplo de superação e dignidade.
Superação e determinação sempre
fizeram parte da sua vida, como pudemos observar nas quadras em momentos difíceis. Dignidade ele demonstrou no momento em que, após
citar a mãe, emocionado, demonstrou
o que o seu técnico Larri Passos significou para ele desde a sua infância.
Quantas vezes no exterior, ao ligar
uma televisão no quarto de um hotel,
eu assistia às memoráveis conquistas
do nosso Guga, e sobre elas não escreverei, pois já fazem parte da história
do tênis e do esporte.
Lembro de uma entrevista de Pete
Sampras afirmando que era uma responsabilidade enorme jogar contra o
brasileiro. Outros tenistas da época
faziam declarações semelhantes.
Sem dúvida alguma ele representou durante alguns anos a imagem do
Brasil no esporte. Mas eis que, por razões alheias a sua vontade, pudemos
observar o início de uma nova fase na
sua vida. Foi então que a minha admiração real começou a crescer quando
ele, após saber da triste realidade de
um problema físico que afetou os seus
movimentos e a sua resistência, jamais pensou em desistir. Tentou cirurgias, fisioterapias, adaptações
musculares e técnicas. Nesse momento, o nosso campeão começou a
colecionar as vitórias mais importantes da sua carreira, pois estas são as vitórias da vida, e não as das quadras.
Eu posso imaginar tudo o que se
passou na sua cabeça ao perceber que,
aos poucos, Roland Garros e outros
grandes torneios iam saindo de seus
sonhos. Mesmo assim, apesar dos
problemas físicos, algumas partidas
memoráveis aconteceram com vitórias geniais sobre os "top ten" do
mundo do tênis.
Mas a realidade era cruel, e, aos
poucos, o cidadão Gustavo Kuerten
começava a crescer diante dos nossos
olhos, participando humildemente de
torneios sem muita expressão, saindo
inclusive em primeiras rodadas.
Imagino quantas e quantas noites
nosso campeão se questionou: será
que vale a pena tentar depois de tantas glórias alcançadas no passado?.
Eu digo que valeu, pois ficou o exemplo de determinação e de superação.
Escrevo este artigo, pois sei tudo o
que se passou em minha cabeça ao saber que minhas mãos não reagiam
mais nem a cirurgias ou fisioterapias.
Por quantas madrugadas fiquei, anos
a fio, sentado em frente ao piano tentando fórmulas mágicas para compensar o problema físico.
No dia 1º de abril estarei na Sala São
Paulo, e no dia 23 de maio no Carnegie Hall, em Nova York, regendo a minha Bachiana na primeira parte e na
segunda metade tocando no piano
músicas lentas de Bach e Mozart.
Graças ao instrumento e à música,
tentarei conseguir a qualidade de som
que sempre sonhei.
Na mesma época o nosso campeão
estará em Paris, no torneio de Roland
Garros, colecionando mais uma vitória da vida.
Neste momento, eu chego à conclusão que o destino coloca em nossa
frente obstáculos quase impossíveis
de serem ultrapassados. Com fé e determinação (em nosso caso), atleta e
músico conseguem vencer essas barreiras. Por outro lado, o destino pode
colocar em nossa frente obstáculos
impossíveis de serem transpostos,
por causa de problemas físicos. Com
humildade temos que reconhecer a
impossibilidade de ultrapassá-los. O
importante é ter o bom senso para diferenciar um caso do outro.
Segue a hora de contar o meu segredo para o Guga, Alice e Larri: cada bola que sair de sua raquete nos próximos jogos, ao pousar mais lentamente na quadra do adversário, aos meus
ouvidos soará como uma nota musical, numa melodia cheia de expressão
e amor, que nos dá orgulho de sermos
brasileiros.
Parabéns, Gustavo Kuerten, as nossas lágrimas são pela sua coragem.
JOÃO CARLOS MARTINS, 67, é maestro titular da Orquestra Bachiana Filarmônica e diretor da faculdade de música da FMU.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Jorge da Cunha Lima: TV pública: os méritos de uma MP
Índice
|