São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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TENDÊNCIAS / DEBATES

Política na era do terror

DEMÉTRIO MAGNOLI


A nossa triste época caminha na direção da "normalização do terror", incorporando-o ao intercâmbio político

À primeira vista, o terror é a anulação da política, a sua supressão em nome de uma lógica do absurdo que choca, paralisa e, no fim, incita à vingança. "Agora, somos todos madrilenhos", dizem os espanhóis de todos os lugares e, certamente, todas as pessoas do mundo que conservam a sua humanidade.
Mas o terror participa da esfera da política. Os terroristas atuam com fins políticos e os atentados inscrevem-se na lógica mais ampla da política. A nossa triste época caminha na direção da "normalização do terror", incorporando-o ao intercâmbio político habitual e ao cálculo de perdas e ganhos do mercado político. A prova é que a carnificina de Madri foi imediatamente submetida ao jogo dos interesses eleitorais do governo espanhol.
No 11 de março, quando ainda se contavam os cadáveres e os feridos chegavam aos hospitais, o ministro do Interior espanhol afirmou que, "com toda a certeza", o grupo terrorista basco ETA era o responsável pelo massacre. Nas horas seguintes, o dedo acusador de todos os grandes partidos espanhóis voltou-se para o mesmo alvo e o governo de Madri, apoiado por Washington, passou no Conselho de Segurança da ONU uma resolução de condenação ao ETA.
Os indícios de que a Al Qaeda, de Osama bin Laden, foi o centro organizador dos atentados estavam disponíveis desde o início. As evidências começaram a jorrar horas mais tarde. O Herri Batasuna, considerado braço político do ETA, negou que o grupo terrorista fosse responsável pelo massacre. A negativa tem credibilidade, pois o ETA costuma informar com antecedência sobre seus atentados. Um e-mail supostamente enviado pela Al Qaeda reivindicou a autoria. A organização de Osama bin Laden tende a se responsabilizar por atentados apenas semanas ou meses depois dos eventos, mas, nesse caso, parece ter se comportado de modo diferente como reação à confusão provocada pelo gabinete de Aznar.
O governo espanhol deflagrou, então, uma operação de contra-informação destinada a conservar as incertezas no mínimo até as eleições de hoje. A "teoria ETA", comprada automaticamente pela mídia da Espanha, servia como luva para emoldurar a política de repressão aos terroristas bascos conduzida pelo partido governista. Mas a verdade direcionaria os holofotes para a opção do gabinete Aznar, repudiada pela maioria da população espanhola, de participar da invasão do Iraque.
O 11 de março de Madri transmitiu uma mensagem política da Al Qaeda para o mundo. A organização terrorista está dizendo que está viva, que a ocupação do Iraque a fortalece e que seu espectro de alvos abrange, além dos Estados Unidos, a "nova Europa" do secretário americano da Defesa, Donald Rumsfeld -isto é, Grã-Bretanha, Espanha, Itália e os outros países da coalizão liderada por Washington. A interpretação dessa mensagem passa a ocupar o centro da agenda política internacional.
George W. Bush, os neoconservadores republicanos e os líderes europeus alinhados precisam enquadrar o 11 de março na imagem de um mundo dilacerado entre os "valores do Ocidente" e a escatologia do islã fundamentalista. Só essa "tradução" simplista e dicotômica da mensagem do terror é capaz de conferir um novo fôlego à "guerra ao terror" desenhada na Casa Branca, legitimando-a e assegurando a reeleição de Bush. Paradoxalmente, essa "tradução" serve, igualmente, aos desígnios de Osama bin Laden, pois a árvore do fundamentalismo nutre-se da presença das tropas de ocupação no Iraque e no Afeganistão, do muro de Sharon na Palestina e da bárbara "prisão off-shore" de Guantánamo.
Mas o massacre de Madri, exatos dois anos e meio depois do 11 de Setembro de 2001, sugere o fracasso da guerra ao terror de Bush. Ele evidencia que a extraordinária mobilização militar e policial, de âmbito global, deflagrada no rastro dos atentados contra as torres gêmeas de Nova York espalhou as sementes do terrorismo e gerou um mundo ainda mais inseguro. Sobretudo indica que a fonte do fanatismo islâmico não pode ser secada pelo poder da pura força.
A política é, em grande medida, um confronto entre interpretações dos significados dos eventos. Nesses dias, quando os espanhóis marcham em silêncio nas ruas, a carnificina do 11 de março é o outro nome do horror. Nos próximos meses, será transfigurada em narrativa política. O conteúdo dessa narrativa influenciará, talvez de modo decisivo, a política externa dos Estados Unidos e a dinâmica das relações internacionais.


Demétrio Magnoli, 45, doutor em geografia humana pela USP, é editor de "Mundo - Geografia e Política Internacional" e pesquisador do NADD-USP.


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