São Paulo, terça-feira, 14 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ainda o PSDB

FERNANDO HADDAD

A reação do vereador Ricardo Montoro ("O PT e a síndrome de Sassá Mutema", pág. A3, 3/5) ao meu artigo "PSDB e PFL" (pág. A3, 25/4) é sintoma da crise momentânea do pacto condominial que governa o país há anos. Essa crise reforça a percepção dos tucanos: pensam ser a superação do atraso, quando são a sua mais moderna tradução.
Comecemos pela crítica teórica. O vereador sugere, de forma irônica, que eu utilizo um conceito contraditório (sic), o de "patrimonialismo moderno", para caracterizar a forma atual de organização do Estado.Tomemos os oximoros "capitalismo e escravidão" (sic) ou "dependência e desenvolvimento" (sic). Essas expressões contraditórias são títulos de livros de um sociólogo que, reconhecidamente, ajudou a entender melhor o Brasil. Mais dedicação às ciências e menos às telenovelas teria evitado o deslize primário. O vereador não lê o autor que mais recomenda. De qualquer forma, se quiser pistas sobre o significado de patrimonialismo moderno, talvez o recente noticiário sobre a privatização da Vale do Rio Doce possa aguçar-lhe a curiosidade científica.
Deixemos de lado a teoria. O vereador acusa a atual administração municipal de malufismo. Ora, onde se aninha o malufismo? O PPB de Maluf compõe, há oito anos, a base de sustentação do governo federal, ocupa ministérios e inúmeros cargos de segundo e terceiro escalão, ajudou a aprovar a emenda da reeleição etc. A tal reforma do Estado promovida pelos tucanos teve o aval entusiasmado das forças políticas mais retrógradas, inclusive do malufismo, e não consta que essas forças tenham vocação para a autodestruição.
Tucanos, pefelistas e malufistas precisam explicar à nação como, tendo vendido em cinco anos o patrimônio público acumulado em 50, e tendo arrecadado em oito anos o montante de tributos que se recolhia em dez, conseguiram dobrar a dívida pública interna e dobrar o passivo externo líquido ao mesmo tempo em que se produzia o maior desemprego da história e se reproduzia a pior distribuição de renda do mundo.


A tal reforma do Estado promovida pelos tucanos teve o aval entusiasmado das forças políticas mais retrógradas


No plano local, as coisas não se passam de maneira diferente. Por ocasião do segundo turno da última eleição para governador de São Paulo, enquanto Marta Suplicy dava apoio incondicional a Mário Covas, o primeiro mandatário do país compartilhava outdoors com o que havia de mais nefasto na política nacional.
No Legislativo municipal, tucanos e malufistas estão unidos contra a atual administração, tentando impedir a universalização dos programas sociais e a implantação do IPTU progressivo, medidas que visam atenuar a terrível situação da população de baixa e média renda da cidade.
Por fim, enfrentemos de uma vez por todas o debate sobre a questão das verbas da educação:
Em primeiro lugar, cabe esclarecer que São Paulo é a única cidade do país que compromete 31% das receitas de impostos com educação, sendo que a quase totalidade das demais gasta 25%.
Em segundo lugar, as taxas, sobre as quais não incidem os 31%, têm pouquíssimo espaço no Orçamento municipal, o que significa dizer que, em São Paulo, a base sobre a qual incidem os 31% é comparativamente maior do que em outros municípios.
Em terceiro lugar, diferentemente da maioria das cidades, São Paulo não mais dispõe de 100% da arrecadação de impostos, uma vez que 13% estão comprometidos com o acordo da dívida com a União. Portanto, como de cada R$ 87 disponíveis gastam-se R$ 31 com educação, pode-se dizer que o comprometimento com o setor chega a 35,6% da receita de impostos que efetivamente permanece em São Paulo.
Qual o grande pecado da atual administração? Valer-se de 2% a 3% a fim de garantir à criança transporte, alimentação, vestuário e renda para fixá-la na escola, combatendo a evasão?
Que o governo municipal não consiga se comunicar com a opinião publica, que os partidos que fazem oposição adotem populismo escrachado, tudo isso é parte do nosso jogo democrático. O que não se pode é tolerar o oportunismo. Até por respeito a todas as forças de esquerda que, destemidamente, aprovaram a corajosa iniciativa da prefeita de São Paulo.
É justamente a experiência de São Paulo que demonstra a viabilidade de um governo de esquerda num Brasil atrasado. Aqui tem sido possível, até agora, isolar as forças conservadoras, de um lado, enquanto, de outro, aglutinam-se outras -certamente, com níveis diferentes de maturidade política e consciência histórica-, que, sob a hegemonia de um partido determinado, promovem mudanças na direção da republicanização do Estado.
Patrimonialismo, moderno ou arcaico, opõe-se por definição a "res publica", que ainda não constituímos neste país.


Fernando Haddad, 39, advogado, mestre em economia, doutor em filosofia, é professor de teoria política do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico de São Paulo.



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