São Paulo, quinta, 14 de maio de 1998

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Uma morte espiritual



A Constituição de 1988 não está mais em vigor. É pura perda de tempo discutir se a conjunção "e" significa "ou"
FÁBIO KONDER COMPARATO

Não sejamos ridículos. A Constituição de 1988 não está mais em vigor. É pura perda de tempo discutir se a conjunção "e" significa "ou", se o "caput" de um artigo dita o sentido do parágrafo ou se o inciso tem precedência sobre a alínea. A Constituição é hoje o que a Presidência quer que ela seja, sabendo-se que todas as vontades do Planalto são confirmadas pelo Judiciário.
As Ordenações Filipinas, que vigoraram entre nós por muito tempo, cominavam dois tipos de pena capital: a morte natural e a espiritual. A primeira atingia o corpo; a segunda, a alma. O excomungado continuava a viver, mas só fisicamente: sua alma fora executada pela autoridade episcopal, com a ajuda do braço secular do Estado.
Algo semelhante aconteceu com nossa Carta. Ela continua a existir materialmente, seus exemplares podem ser adquiridos nas livrarias (na seção das obras de ficção, naturalmente), suas disposições são invocadas pelos profissionais do Direito no característico estilo "boca de foro". Mas é um corpo sem alma. Hitler, afinal, não precisou revogar a Constituição de Weimar para instaurar na civilizada Alemanha a barbárie nazista: simplesmente relegou às traças aquele "pedaço de papel".
A única razão de ser de uma Constituição é proteger a pessoa humana contra o abuso de poder dos governantes. Se ela é incapaz disso, porque o governo dita a interpretação de suas normas ou as revoga sem maiores formalidades, seria mais decente mudar a denominação -"o presidente da República, ouvido o Congresso Nacional e consultado o Supremo Tribunal Federal, resolve: a Constituição da República Federativa do Brasil passa a denominar-se regimento interno do governo".
No início do século, Ruy Barbosa trovejou contra o presidencialismo brasileiro, qualificando-o como "ditadura em estado crônico, a irresponsabilidade geral, a irresponsabilidade consolidada, a irresponsabilidade sistemática do Poder Executivo". Ele ainda não tinha visto o monstro em sua plena maturidade. Naqueles felizes tempos, a ditadura presidencial só se exercia no âmbito do Executivo. Hoje, ela compreende também o poder de legislar e o de emendar a Constituição, tudo sob as vistas complacentes do Judiciário.
Alguns exemplos bastam para ilustrar a realidade. É bem conhecida a transformação operada no instituto das medidas provisórias. A Constituição as restringe aos casos de relevância e urgência e fixa em 30 dias seu prazo de vigência sem aprovação do Congresso.
Mas o STF afastou, por inúteis, formalidades constitucionais: entendeu que relevância e urgência são "questão política", insuscetível de apreciação pelo Judiciário, e passou a admitir que MPs não apreciadas pelo Congresso fossem reeditadas, com o mesmo ou diferente teor, indefinidamente.
Não contente com essa invasão no campo legislativo, o Executivo entendeu que a modernidade exigia mais certeza nas decisões judiciárias.
De um lado, baixou MPs que retiraram, de um dia para outro, a competência dos juízes para decidir liminarmente demandas contra o Executivo. Num só golpe, absorveu em si os dois outros Poderes. De outro, transformou o STF em órgão de consulta, neutralizando antecipadamente, por meio de uma aberrante "ação declaratória de constitucionalidade", qualquer demanda judicial de particular contra o Estado em defesa de seus direitos.
Mas era preciso avançar mais, abolindo a tradicional rigidez de uma Constituição escrita. A eficácia das medidas de modernização liberal exigia mudanças constitucionais mais céleres.
Mãos à obra. Cuidou-se de afastar, desde logo, duas imposições consideradas excessivas para emendar a Carta: a de que a mesma proposta fosse votada em dois turnos por ambas as Casas do Congresso e a de que matéria constante de proposta rejeitada não pudesse ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa. Assim foi feito, sempre com o oportuno beneplácito do STF.
No caso da emenda da reeleição, deixando de lado a falta de assepsia na compra de votos de deputados, a proposta original, aprovada em primeiro turno na Câmara, foi alterada em segundo turno e, em seguida, novamente alterada no Senado. Mas o presidente do Congresso promulgou-a assim mesmo, sem maiores indagações.
Logo após, surgiu discussão "de pormenor" a respeito da necessidade de desincompatibilização dos chefes de Executivo para concorrer à reeleição. O Tribunal Superior Eleitoral, pela resolução 19.952, de 2/9/97, apressou-se em esclarecer que passavam a existir, doravante, dois pesos e duas medidas.
Se, por exemplo, o atual presidente quiser se candidatar à Prefeitura de Ibiúna, onde possui aprazível casa de campo, deve renunciar ao mandato seis meses antes do pleito. Mas, se preferir concorrer à reeleição, pode continuar no cargo, liberando verbas, nomeando ministros e funcionários, sem deixar de aparecer um só dia na imprensa, no rádio e na televisão.
Faltava, porém, um complemento à "ditadura irresponsável": abolir sua temporariedade. Pois bem, disso se encarregou o deputado Miro Teixeira, propondo restabelecer a revisão constitucional expeditiva para emendar vários artigos da Carta, entre eles o art. 14, no qual se proíbe justamente a sucessiva reeleição de chefes de Executivo.
A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, com os votos de todos os representantes de partidos da oposição, já aprovou essa proposta, embelezando-a com um plebiscito a se realizar ainda neste ano, na véspera do que seria o décimo aniversário da Constituição. É triste morrer tão moça, sem chegar nem mesmo à adolescência!

Fábio Konder Comparato, 61, advogado, doutor pela Universidade de Paris (França), é professor titular da Faculdade de Direito da USP, autor do livro "Para Viver a Democracia", fundador e diretor da Escola de Governo.



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