São Paulo, segunda-feira, 14 de julho de 2008

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RUY CASTRO

Urnas funerárias

RIO DE JANEIRO - A cena se repete milhares de vezes por minuto: gente na rua fazendo sinal para o táxi que passa indiferente aos frenéticos acenos. Claro -porque está ocupado. Dentro do carro, o motorista pisca os dedinhos para fazer o sinal de "lotado", mas, como os pára-brisas, laterais e traseiras desse táxi estão solidamente vedados por insulfilme, também o sinal é invisível para quem está de fora. Só resta ao cidadão ficar com o dedo estendido em vão, sentindo-se o último dos rejeitados.
Outro dia, um conhecido meu sofreu um seqüestro-relâmpago em São Paulo. Seu carro só não tinha insulfilme dentro do porta-luvas -era a sua maneira de sentir-se "protegido" não sei do quê. Os seqüestradores rodaram com ele durante horas pelas ruas mais movimentadas, rindo dos policiais com quem cruzavam pelo caminho. Isolado do mundo pelo filme preto, meu amigo não tinha quem o salvasse. A brincadeira custou-lhe alguns milhares de reais.
O insulfilme tornou-se ainda o grande protagonista das blitze promovidas pelas nossas polícias. A partir de certo grau de invisibilidade, é para o carro ser parado na certa -basta que os homens estejam de olho num exemplar daquela marca ou cor. Para não falar no risco de você estar rodando à noite com um carro desses, todo envelopado, com o som e o ar condicionado ligados -ou seja, incapaz de perceber os sinais que a polícia está fazendo atrás de você, mandando-o parar. Como você acha que eles interpretarão a sua atitude?
No Rio, há dez dias, a polícia suspeitou de um carro parado, de que não se via o interior, e não pensou duas vezes: mandou bala. Dentro dele estava uma criança.
Até há pouco, eu não entendia por que, vistos de fora, carros vedados com insulfilme me lembravam urnas funerárias. Agora entendo.


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