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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Ministério Público deve conduzir investigações?
SIM
O risco de um retrocesso
BORIS FAUSTO
Há o risco de um retrocesso -e dos
mais sérios- no combate às violações da lei penal e especificamente à
corrupção, se vier a ocorrer uma decisão do STF que negue ao Ministério Público (MP) funções investigatórias. Não
se trata de hipótese remota, à vista de
dois votos nesse sentido já proferidos
por membros da mais alta Corte de Justiça, em caso que envolve um médico e
deputado acusado de desviar recursos
do Ministério da Saúde, estando a decisão pendente dos demais votos.
A questão tem dois aspectos entrelaçados: o primeiro deles é o jurídico, envolvendo matéria interpretativa; o segundo diz respeito às conseqüências da
interpretação, no âmbito dos interesses
coletivos. Comecemos pelo primeiro. O
artigo 129 da Constituição Federal atribui, privativamente, ao MP promover a
ação penal pública. Essa atividade, como acentua recente acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão de 25/5/04, depende, para seu efetivo exercício, da colheita de elementos
que demonstrem a certeza da existência
do crime e indícios de que o denunciado
é o seu autor; ou seja, depende de uma
investigação. É certo que, no mais das
vezes, essa tarefa é efetuada pela polícia,
mas nada impede atividade isolada ou
concomitante por parte do MP.
Tanto assim que o inquérito policial
-instrução promovida pela polícia-
não é indispensável ao exercício da ação
penal, como diz expressamente o art. 39
do Código de Processo Penal. Mais ainda, a lei complementar nº 75/90, em seu
art. 8, inciso IV, confere ao MP "realizar
inspeções e diligências investigatórias",
para o exercício de suas atribuições institucionais. Vemos assim que a interpretação favorável à competência investigatória do MP não resulta de um esforço imaginativo, mas do bom entendimento da sistemática jurídica, a partir
da norma constitucional.
Sob o segundo aspecto, deixando de
lado interesses corporativos que emergem de toda parte, penso que o interesse
coletivo só tem a ganhar com as atuais
atribuições conferidas ao órgão. Como
diz a procuradora-geral da República
em São Paulo, Janice Ascari, em entrevista publicada n" "O Estado de S. Paulo" em 1º/8, desde o caso pioneiro, comandado por Hélio Bicudo, sobre o Esquadrão da Morte, até os mais recentes,
como o do juiz Nicolau dos Santos Neves, o do Bar Bodega e, especialmente, o
de Celso Daniel, o Ministério Público
tem realizado inteiramente investigações, ou tem tido destacada atuação, na
apuração de fatos obscuros.
Isso não significa pretender uma hierarquia em que o MP estaria em nível
superior à autoridade policial, embora
seja certo que os promotores têm garantias constitucionais (inamovibilidade,
independência funcional e vitaliciedade) que os deixam mais livres de pressões do que autoridades policiais.
Por outro lado, convém lembrar que
nem sempre a atuação de membros do
MP pautou-se pelo equilíbrio. Lembremos o encarniçamento de alguns procuradores contra integrantes do governo Fernando Henrique, praticando injustiças clamorosas -como se viu, por
exemplo, nas acusações infundadas
contra o então secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge.
Entretanto, para enfrentar o problema da politização do MP, a que também
estão sujeitas outras instituições, existe
em tese o remédio da responsabilização
contra quem comete abuso de poder.
Em tese, porque, como quase sempre
acontece, os caminhos da responsabilização são tortuosos e lentos. É um assunto que, a meu ver, deve ser cogitado
na proposta de reforma do Judiciário,
associado ao da criação de um conselho
de controle externo do MP.
Mas, se há problemas a serem enfrentados, retirar do MP suas funções investigatórias representaria um nítido retrocesso, num país que se caracteriza pela
quase impunidade de responsáveis por
ações delituosas de vulto. Na divisão entre ricos e pobres, presente na consciência popular, está profundamente enraizada a noção de que só os pobres vão
para a cadeia, pois os ricos têm bons advogados para defendê-los e a Justiça a
seu lado. Essa visão algo simplista deve
ser matizada, sob pena de se atingir indiscriminadamente os membros do Poder Judiciário.
Entretanto onde há fumaça há fogo:
amputar as funções investigatórias do
MP, sob alegação de inconstitucionalidade, só contribuiria para alimentá-lo.
Mais ainda, uma interpretação dessa
natureza viria contribuir para o crescente descrédito das instituições democráticas. Dar efetivo conteúdo à igualdade de direitos e obrigações, independentemente das condições de riqueza e
outras dos cidadãos, é um objetivo que
nunca se alcançará de todo, aqui ou lá
fora. Mas é preciso fazer avançar esse
objetivo, com medidas concretas, e não
retroceder em um caminho já trilhado.
Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional da USP. É autor de, entre outras obras,
"A Revolução de 30" (Companhia das Letras).
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