São Paulo, sábado, 14 de agosto de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Ministério Público deve conduzir investigações?

SIM

O risco de um retrocesso

BORIS FAUSTO

Há o risco de um retrocesso -e dos mais sérios- no combate às violações da lei penal e especificamente à corrupção, se vier a ocorrer uma decisão do STF que negue ao Ministério Público (MP) funções investigatórias. Não se trata de hipótese remota, à vista de dois votos nesse sentido já proferidos por membros da mais alta Corte de Justiça, em caso que envolve um médico e deputado acusado de desviar recursos do Ministério da Saúde, estando a decisão pendente dos demais votos.
A questão tem dois aspectos entrelaçados: o primeiro deles é o jurídico, envolvendo matéria interpretativa; o segundo diz respeito às conseqüências da interpretação, no âmbito dos interesses coletivos. Comecemos pelo primeiro. O artigo 129 da Constituição Federal atribui, privativamente, ao MP promover a ação penal pública. Essa atividade, como acentua recente acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão de 25/5/04, depende, para seu efetivo exercício, da colheita de elementos que demonstrem a certeza da existência do crime e indícios de que o denunciado é o seu autor; ou seja, depende de uma investigação. É certo que, no mais das vezes, essa tarefa é efetuada pela polícia, mas nada impede atividade isolada ou concomitante por parte do MP.
Tanto assim que o inquérito policial -instrução promovida pela polícia- não é indispensável ao exercício da ação penal, como diz expressamente o art. 39 do Código de Processo Penal. Mais ainda, a lei complementar nº 75/90, em seu art. 8, inciso IV, confere ao MP "realizar inspeções e diligências investigatórias", para o exercício de suas atribuições institucionais. Vemos assim que a interpretação favorável à competência investigatória do MP não resulta de um esforço imaginativo, mas do bom entendimento da sistemática jurídica, a partir da norma constitucional.
Sob o segundo aspecto, deixando de lado interesses corporativos que emergem de toda parte, penso que o interesse coletivo só tem a ganhar com as atuais atribuições conferidas ao órgão. Como diz a procuradora-geral da República em São Paulo, Janice Ascari, em entrevista publicada n" "O Estado de S. Paulo" em 1º/8, desde o caso pioneiro, comandado por Hélio Bicudo, sobre o Esquadrão da Morte, até os mais recentes, como o do juiz Nicolau dos Santos Neves, o do Bar Bodega e, especialmente, o de Celso Daniel, o Ministério Público tem realizado inteiramente investigações, ou tem tido destacada atuação, na apuração de fatos obscuros.
Isso não significa pretender uma hierarquia em que o MP estaria em nível superior à autoridade policial, embora seja certo que os promotores têm garantias constitucionais (inamovibilidade, independência funcional e vitaliciedade) que os deixam mais livres de pressões do que autoridades policiais.
Por outro lado, convém lembrar que nem sempre a atuação de membros do MP pautou-se pelo equilíbrio. Lembremos o encarniçamento de alguns procuradores contra integrantes do governo Fernando Henrique, praticando injustiças clamorosas -como se viu, por exemplo, nas acusações infundadas contra o então secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge.
Entretanto, para enfrentar o problema da politização do MP, a que também estão sujeitas outras instituições, existe em tese o remédio da responsabilização contra quem comete abuso de poder. Em tese, porque, como quase sempre acontece, os caminhos da responsabilização são tortuosos e lentos. É um assunto que, a meu ver, deve ser cogitado na proposta de reforma do Judiciário, associado ao da criação de um conselho de controle externo do MP.
Mas, se há problemas a serem enfrentados, retirar do MP suas funções investigatórias representaria um nítido retrocesso, num país que se caracteriza pela quase impunidade de responsáveis por ações delituosas de vulto. Na divisão entre ricos e pobres, presente na consciência popular, está profundamente enraizada a noção de que só os pobres vão para a cadeia, pois os ricos têm bons advogados para defendê-los e a Justiça a seu lado. Essa visão algo simplista deve ser matizada, sob pena de se atingir indiscriminadamente os membros do Poder Judiciário.
Entretanto onde há fumaça há fogo: amputar as funções investigatórias do MP, sob alegação de inconstitucionalidade, só contribuiria para alimentá-lo. Mais ainda, uma interpretação dessa natureza viria contribuir para o crescente descrédito das instituições democráticas. Dar efetivo conteúdo à igualdade de direitos e obrigações, independentemente das condições de riqueza e outras dos cidadãos, é um objetivo que nunca se alcançará de todo, aqui ou lá fora. Mas é preciso fazer avançar esse objetivo, com medidas concretas, e não retroceder em um caminho já trilhado.


Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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