São Paulo, sexta-feira, 14 de setembro de 2007

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O Supremo sai do berço esplêndido

CANDIDO MENDES

A nova aura cívica do STF morreu às portas do Senado, trancado após impropérios e socos para o julgamento do seu presidente

O MAIS importante julgamento do Supremo Tribunal Federal em nossa história abriu de par em par, graças à imprensa, a intimidade da nossa mais alta corte.
Os furos de "O Globo" e desta Folha, ao começo e ao cabo dos debates, permitiram também novos olhos quanto à privacidade de seus membros, à crença nas 11 "ilhas solitárias" na aposição do voto ou, sobretudo, à influência da opinião pública no veredicto final do nosso pretório excelso.
Num espaço essencialmente público, exposto à absoluta cobertura da mídia, a privacidade sobrevive por fortuna ao portento tecnológico dos meios de informação. Tudo o que concerne ao pleito interessa à cidade, e a motivação ou a dúvida do decidir não são matéria de confessionário, mas de um processo de esclarecimento inseparável do voto final.
Joaquim Falcão, aliás, nestas páginas ("Tendências/Debates", 28/8), mostrou como, na Suprema Corte americana, o prévio debate dessas razões faz mesmo parte das rotinas, nos cuidados de se esclarecerem os pólos do confronto ou a sua marcha para um consenso.
Estes dias, em Brasília, certamente forçam a um definitivo cuidado eletrônico dos magistrados, digitando as telinhas ou os celulares, ainda distraídos no mundo pré-digital.
As redes confiscaram a subjetividade, a pedir ao próprio Supremo, como nova exigência do Estado de Direito, que proteja a invasão do espaço da pessoa, o que lhe resta de intimidade, ou logre garantir o direito à imagem diante da multiexpropriação virtual que mal começa.
O país pode ver a ação toda da máquina do Judiciário, na criatividade e na articulação do esperado de cada função na corte.
Quando o relator Joaquim Barbosa declara que, no seu voto, vê a nação, assume o dado da expectativa social do julgamento e, nela, o que a mídia processaria como opinião pública, o quarto poder da democracia, mas à margem, ainda, dos seus controles.
A maturidade da nossa consciência da ordem pública não convive com o discurso ingênuo de tecnicalidade formal acautelada desde o direito romano pelo alerta: o máximo de direito pode ser o máximo de injustiça.
A virada de página desse julgamento veio, de vez, da maratona, diante do país, da minudência do debate, dos 144 pronunciamentos do relator, vencendo todo o preconceito de um Supremo a ratificar fatos consumados na onda da opinião pública.
A nova intimidade com a cabeça dos julgadores ao mesmo tempo nos leva a perguntar do temor da ministra Cármen Lúcia de que há maiorias feitas pelo menos na Segunda Turma até 2010. A flexibilidade das opiniões, expressa pela amplitude dos debates dos últimos dias, só pode apontar ao outro pólo, quando, nestes anos, o Supremo enfrentará o teor da pressão midiática, a efetiva garantia do direito de resposta ou de outros institutos do art. 5º da Constituição, que credenciaram o avanço da nossa democracia profunda demonstrada nestes dias, em brado retumbante.
Entre esses reptos está, exatamente, a conservação ou não dos privilégios de foro, em que continuamos, no país das clientelas, o regime dos "mais iguais", responsável pelo mal-estar da consciência cívica diante da máquina jurídica nacional.
Os 40 denunciados entram numa fila de 49 julgamentos a sua frente, beneficiados pela mesma prerrogativa obsoleta, pelo mesmo tribunal. Culpabilidades ou inocências se tragam no corredor da desmemória. Nele não pode esvair-se o anseio de justiça, sobre a qual se debruçam, para além de celulares e laptops, Joaquim Barbosa e seus colegas de toga e postura do Supremo no país que emerge.
A nova aura cívica da corte morreu, entretanto, às portas do Senado, trancado após impropérios e socos para o julgamento do seu presidente.
Não vimos ainda a virada de página da nossa corrupção, tal como tolerada aos trancos e barrancos pela pertinaz cultura política do país da "cosa nostra". Os 40 a 35 votos pró e contra a absolvição dizem do peso da "realpolitik", do polegar ou do abraço do amigão ou dos dossiês de represália.
O crivo histórico foi o dos melancólicos senadores perplexos. A Casa não aprovou a proposta de Cristovam Buarque de guardarmos para revelação, no futuro, da meia dúzia responsável pelo salva-vidas da ambigüidade, para afinal continuarmos, mornamente, com os dois Brasis.


CANDIDO MENDES, 79, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz, é presidente do "senior Board" do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

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