São Paulo, terça-feira, 14 de setembro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A nossa noção de pátria

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK


Achamos muito difícil que iniciativa popular altere o modo de enfrentar planos ligados à saúde, com lógica, adequação e velocidade

Quando nossa seleção joga, há um difuso e generalizado sentimento de patriotismo neste Brasil. Torcemos juntos, sofremos juntos, discutimos todos as possíveis mancadas do nosso genial técnico e as proezas dos nossos jogadores.
Notamos que, nos últimos anos, este sentimento coletivo de identidade e de vontade de fazer com que o país melhore não se resume só ao futebol. O exemplo da obrigação de ficha limpa para disputar cargo eletivo é paradigmático: uma iniciativa popular (dificilmente algo deste tipo sairia do próprio Congresso) com mais de um milhão e meio de assinaturas e contra a vontade de muitos acabou virando lei.
Como participantes e atores no contexto da saúde pública, ficamos nos perguntando se não seria possível algo semelhante para resolver antigos problemas na nossa área. Nosso sistema de saúde tem expressivos obstáculos que, se dependerem do atual modelo, não vão ser resolvidos nunca.
São desperdícios notórios, verdadeiros ralos na distribuição de autorizações para internação hospitalar, prejudicando quem atende as adversidades mais complexas; atrasos injustificáveis no uso de novos recursos diagnósticos ou de novos remédios pelo lerdo sistema cartorial de registro dos mesmos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ao lado da ineficiência deste órgão.
Há dificuldades na execução de pesquisas por demoras, também injustificáveis, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) em apreciá-las -ultrapassando em muito seu prazo normativo de 60 dias- , sem falar da falta de conhecimento de alguns membros deste preclaro grupo no conhecimento de protocolos de pesquisa clínica.
Há também falta total de lógica nas tabelas de pagamento de procedimentos em consultas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), privilegiando procedimentos em detrimento de ações mais cognitivas, como uma consulta médica.
Existem outras gracinhas do mesmo jaez: uma notável é o famoso teto que o SUS impõe a hospitais com ele conveniados: no contrato, há a obrigação do hospital de atender ultrapassando o teto, mas deixando claro que não receberá se o fizer; deve ser a única situação deste pais onde alguém é obrigado a trabalhar de graça.
Não temos a intenção de fazer uma lista extensa de problemas para os quais não vemos um horizonte razoável para solução na organização atual destas coisas.
Também achamos muito difícil que, neste momento, uma iniciativa popular saia às ruas e consiga modificar a maneira pela qual planos relacionados com a saúde sejam enfrentados, de um modo lógica, adequado e com rapidez compatível com nossa era.
Deixamos claro que não é aprovando a vinculação de recursos a gastos na saúde, emenda que corre bem devagar na Câmara, que isto vai ser viabilizado, já que largar a definição do que é consumido em saúde para os atuais gestores vai apenas incentivar a criatividade contábil destes senhores.
Sim, porque ambulância para jogar doentes de um município para outro ou levar doenças complicadas para o Hospital das Clínicas de São Paulo não são, a nosso ver, dispêndios em saúde, mas, sim, truques dos alcaides vizinhos ou até não tão vizinhos: um de nós se lembra de ter recebido, na porta do pronto-socorro do Hospital das Clínicas, um paciente vindo de Roraima, em ambulância.


VICENTE AMATO NETO, 83, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP. E-mail: amatonet@usp.br.
JACYR PASTERNAK, 70, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é doutor em medicina pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
E-mail: jpaster@einstein.br .

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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