São Paulo, quinta-feira, 14 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O outro mundo possível

EMIR SADER

Aos 11 anos da rebelião zapatista, que convocou à luta contra o neoliberalismo em escala global, aos seis anos da explosão de Seattle, que fez aflorar explosivamente à superfície o mal-estar gerado pelas políticas neoliberais, a quatro anos da sua primeira versão, o Fórum Social Mundial retorna à sua sede permanente -Porto Alegre- para realizar seu quinto encontro.
Desde então, mudou o clima mundial, com o esgotamento do modelo neoliberal, com a instauração de um clima de guerra pela política imperial estadunidense e com o surgimento dos movimentos por uma globalização solidária. Porto Alegre triunfou sobre Davos, no sentido em que deixou claro para o mundo que os temas fundamentais da humanidade no novo século são discutidos no fórum social, e não no fórum econômico, e que, ao mesmo tempo, há incompatibilidade essencial entre os dois, que apontam para mundos contraditórios entre si.
Porém, apesar da perda de impulso inicial, o liberalismo econômico continua a ser predominante no mundo; nenhum governo chegou a romper com o neoliberalismo e dar início a um mundo pós-neoliberal. Nenhum centavo de dólar deixou de circular na esfera especulativa; a África continua um processo acelerado de regressão; a concentração de riqueza, de patrimônio e de poder em torno das potências centrais do capitalismo não foi interrompida, assim como a degradação da natureza e do meio ambiente; o monopólio informativo, a avalanche propagandística estadunidense continuam a inundar o mundo com suas mercadorias e seus valores mercantis, belicistas e discriminatórios.


Os temas fundamentais da humanidade no novo século são discutidos no fórum social, e não no fórum econômico


A força maior do mundo neoliberal reside não na sua superioridade militar, tecnológica, econômica ou política, mas no seu predomínio ideológico. Com o fim do "campo socialista", o "american way of life" disputa praticamente sozinho os corações e as mentes como forma de sociabilidade. O fundamentalismo islâmico não pode competir como proposta de vida em sociedade.
O 5º Fórum Social Mundial, cumprindo as exigências do fórum realizado em janeiro deste ano na Índia, está comprometido com o protagonismo central dos movimentos sociais e o objetivo fundamental da formulação de propostas concretas para a construção do mundo pós-neoliberal.
Criar o outro mundo possível desde agora é começar a gerar novas formas de sociabilidade. A construção desse outro mundo possível e urgentemente necessário não se deteve. Nós mesmos, aqui no Brasil, podemos contabilizar iniciativas que prefiguram esse mundo fundado na solidariedade, na universalização dos direitos e nos valores humanistas. Citamos três dentre elas, todas situadas na chamada esfera pública, isto é, nem no mercado nem simplesmente na esfera estatal, reforçando o argumento da identificação desse outro mundo com os interesses públicos e a esfera pública.
A primeira são os assentamentos dos trabalhadores sem terra por todo o Brasil. Nesses espaços, conquistas democráticas de mais de 1 milhão de trabalhadores rurais, com um sistema educacional de caráter nacional, que inclui cursos universitários. É um espaço fundado na conquista da terra, mas que ganha identidade própria e se consolida com o sistema educacional, elemento essencial para afirmar o caráter emancipatório dos assentamentos e do movimento dos sem-terra.
A segunda iniciativa são as políticas de orçamento participativo, que permitem que a cidadania organizada compartilhe responsabilidades de poder e socializam a política, fazendo com que um tema essencial como o do orçamento -quem financia quem através do Estado- seja transparente e seja decidido em suas prioridades pelos cidadãos, e não por órgãos tecnocráticos ou políticas de favor nas esferas Legislativas e Executivas.
A terceira iniciativa do outro mundo possível em processo de criação entre nós são os CEUs (Centros Educacionais Unificados), situados todos na mais longínqua periferia da cidade de São Paulo, como espaços que articulam nesses territórios periféricos -como propunha Milton Santos- atividades educacionais, culturais e esportivas, além de serem utilizados pelas comunidades como seus espaços de organização, de afirmação de sua identidade, de formação educacional e de apoio na sua constituição como sujeitos sociais. São espaços de articulação indissolúvel entre suas práticas educacionais, culturais e esportivas, forma privilegiada de alternativa das crianças e adolescentes da periferia das grandes metrópoles às práticas delitivas e alienadas a que estão submetidas.
As novas formas de sociabilidade têm que cumprir com esses dois objetivos: afirmar direitos, gerando novos espaços públicos, e promover a emancipação, pelo apoio à criação dos sujeitos dessa emancipação. Assim avançaremos na construção do outro mundo possível.

Emir Sader, 61, é professor de sociologia da USP e da Uerj, onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas. É autor de "A Vingança da História" (Boitempo Editorial), entre outros livros.


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