São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os países que possuem armas nucleares são necessariamente uma ameaça à paz mundial?

NÃO

A própria proliferação é a ameaça

PETER DEMANT

ARMAS NUCLEARES são uma praga para a humanidade, mas dizer que o mero fato de possuí-las torna um Estado uma ameaça mundial é uma simplificação irresponsável. Armas não têm vontade independente. O assassino não é a bomba em si, mas quem aperta o botão.
Há uma grande diferença entre um arsenal nuclear sob controle democrático e racional (como os casos de EUA, Inglaterra e França) e um arsenal nas mãos de um ditador agressivo e irresponsável. O problema não está com as armas, mas com seus usuários.
Um canivete na mão de um assassino é mais perigoso que um fuzil na mão de um delegado treinado para manter a paz na sociedade. Como mostrou o episódio do 11/9, mesmo uma faquinha de bordo pode ser usada como meio de assassinato em massa.
O Tratado de Não-Proliferação Nuclear foi criado com o objetivo de afastar armas nucleares das mãos de iniciantes. A porta desse clube de elite vem sendo repetidamente forçada desde 1968 por emergentes ambiciosos. Agora, com a entrada da Coréia do Norte, perdeu seu último vestígio de exclusividade.
É possível que o fato de os EUA terem classificado Pyongyang como pertencente ao eixo do mal, marcada para uma mudança de regime, a tenha incentivado a transpor o limiar nuclear: uma proliferação preventiva para prevenir uma guerra preventiva, pois, uma vez na posse de armas de destruição em massa, um regime se torna virtualmente inatacável. Mas a Coréia já estava a caminho de adquirir tais armas, de todo modo.
Manter esse monopólio da "elite" não é democrático, mas democratizar o acesso é pior. Os Estados nucleares originais não ameaçam a paz mundial pois nunca tiraram suas armas do porão: sabem que uma terceira guerra mundial significaria também seu próprio fim. O verdadeiro perigo é a proliferação em si, com atores que poderão ter menos autocontrole.
"Quanto mais Estados tiverem um dedo no gatilho, mais seguro o mundo será, pois todo mundo estará controlando todo mundo": argumento popular, mas falacioso.
Dissuasão funciona apenas entre atores racionais que valorizam sua própria sobrevivência. Infelizmente, não faltam malucos e extremistas que pensam de outra forma.
Como vamos reagir a terroristas com armas nucleares? A democratização promete poder ao povo, de modo que, juntos, possamos moldar nosso futuro; a "democratização dos meios de violência" esvazia essa premissa ao dar poder a minorias extremistas e regimes tirânicos.
Cada novo proliferador incentiva outros a entrarem na corrida e enfraquece a posição daqueles que não se "nuclearizam". Egito e Turquia já anunciaram que, assim como o Irã, pretendem desenvolver energia nuclear "para fins pacíficos". Arábia Saudita e Japão podem ser os próximos da fila. Há muitos outros candidatos. O que fazer? Assim como mísseis intercontinentais e cartas com antraz, armas nucleares são um efeito colateral do mesmo processo de progresso científico inerentemente neutro que também produz aviões, internet e vacina para a Aids.
Armas de destruição em massa e terrorismo, capacitados pelo inexorável crescimento e difusão da tecnologia, são desafios gêmeos que estão tornando obsoleto o sistema internacional atual.
Desarmamento nuclear é mais que um sonho nobre: a cada ano, torna-se uma necessidade mais premente para a sobrevivência coletiva. Todavia, é também politicamente quase impossível no contexto da nossa "comunidade internacional" de 200 Estados zelosos da sua soberania e que (às vezes justificadamente) desconfiam das intenções de seus vizinhos.
E não há uma autoridade global efetivamente abrangente para manter os agressores na linha. O sistema anárquico de Estados independentes e egoístas, tão caro à escola "realista" das relações internacionais, sempre foi uma afronta ao coração humano. Com a proliferação fora de controle, está se tornando agora também uma ameaça à nossa sobrevivência.


PETER DEMANT, historiador especialista em Oriente Médio, doutor pela Universidade de Amsterdã (Holanda), é professor de relações internacionais na USP e autor de, entre outras obras, "O Mundo Muçulmano".

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