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TENDÊNCIAS/DEBATES
O "boimate" e o desafio da mediocridade
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
Foi com o objetivo de promover a eficiência na produção intelectual que foi instituída a fórmula "organização social"
QUEM NÃO se lembra do sensacional "furo de reportagem"
do maior semanário brasileiro
em começos da década de 1980, quando empolgavam o imaginário popular
as primeiras façanhas da engenharia
genética? Um grande laboratório estrangeiro teria conseguido hibridizar
o tomate e a vaca!
Citava-se uma das mais conceituadas revistas científicas de então. Pensem só que magnífico porvir! Uma vaca capaz de fotossíntese, dispensando
pasto e ração e dando flores nos chifres. Um tomateiro sendo ordenhado
no jardim de sua casa, dando leite
quentinho. E quantos outros híbridos
milagrosos não viriam em seguida?
Mas eis que a decepção veio no dia
seguinte. A revista científica em questão fora publicada no dia 1º de Abril.
Pois não é que se anuncia agora
uma hibridização ainda mais inconsistente, ainda mais grotesca que
aquela que teria gerado o "boimate", a
saber, a fusão da CLT com o regime
do servidor público? E ainda estamos
longe do 1º de Abril!
A mais evidente incompatibilidade
genômica da hibridização proposta
está na imposição de concursos públicos e regime CLT concomitantemente. A CLT significa ausência de estabilidade. O concurso público subentende a estabilidade. Ou muda-se a Constituição, ou fecha-se a Justiça do Trabalho. Mas, por outro lado, vai ser um
maná para os advogados trabalhistas.
Ninguém duvida das boas intenções da administração federal ao enviar ao Congresso Nacional a proposta de criação de uma nova fórmula
institucional, a Fundação Pública de
Direito Privado. A iniciativa demonstra que o governo federal percebe que
atividades diversas exigem organizações diversas.
Não podemos esperar que operem
com eficiência ideal a tropa de elite e
o Corpo de Baile do Teatro Municipal
se a ambas organizações forem impostas as mesmas regras, a mesma
disciplina e, enfim, o mesmo uniforme. O que seria uma blitz da valorosa
tropa de elite ao som do "Lago dos
Cisnes" de Tchaikovsky e com aquelas sapatilhas cor-de-rosa?
A vitaliciedade, isto é, a estabilidade irreparável, como é o caso do funcionalismo brasileiro, é fonte de ociosidade, irresponsabilidade e mediocrização. Em alguns casos, traz benefícios compensatórios. É o caso de policiais, juízes, fiscais, promotores etc.,
que, se pressionados, encontram na
estabilidade um escudo eficiente.
Todavia, na grande maioria de funções públicas e paraestatais, a estabilidade protege apenas o medíocre e se
constitui no maior obstáculo à qualidade e à eficiência. Essa característica
se torna tanto mais saliente quanto
mais intelectualmente intensa for a
atividade.
Foi, pois, com o objetivo de promover a eficiência na produção intelectual que foi instituída, há pouco mais
de dez anos, a fórmula "organização
social" (OS). É uma organização civil
sem fins lucrativos que firma com o
governo um contrato dito "de gestão"
estabelecendo objetivos e metas e cujo desempenho é periodicamente
avaliado. Cada OS propõe seu próprio
sistema de seleção, que o governo
aceita ou não, e este último pode sempre interromper o contrato de gestão.
O Conselho de Administração da OS é
civilmente responsável.
Essas condições resultam em eficiência e produtividade comparáveis
às do setor privado. A legitimidade da
fórmula foi recentemente testada
graças a denúncias de inconstitucionalidade provenientes de dois partidos importantes e que foram rejeitadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Mas eis que ressurgem as cruzadas
defensoras da mediocridade e da estabilidade vitalícia. Uma irmandade
misericordiosa de deputados do PT
pretende inserir na fórmula sofrível
de criação das fundações híbridas a
exigência de concursos públicos.
Outro franco ataque às organizações dessa natureza acaba de ser realizada pelo Ministério Público, o que
reflete o conceito equivocado de que
o bem-estar do indivíduo deve prevalecer sobre o interesse da sociedade,
que é o que fundamenta a exigência
da estabilidade.
Paradoxalmente esse preceito é
uma característica do capitalismo, e
não do socialismo. O profissional
competente, meritório, não precisa
desse tipo de proteção. E é engano
pensar que o medíocre é apenas um
peso morto, tolerável, inerte. Pois a
experiência mostra que o medo da
comparação com o competente e as
exigências naturais de um meio ativo
e comprometido com a qualidade geram militância e corporativismo adversos que terminam corrompendo o
ambiente de trabalho e pervertendo
os valores da instituição.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 76, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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