São Paulo, sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O "boimate" e o desafio da mediocridade

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Foi com o objetivo de promover a eficiência na produção intelectual que foi instituída a fórmula "organização social"

QUEM NÃO se lembra do sensacional "furo de reportagem" do maior semanário brasileiro em começos da década de 1980, quando empolgavam o imaginário popular as primeiras façanhas da engenharia genética? Um grande laboratório estrangeiro teria conseguido hibridizar o tomate e a vaca!
Citava-se uma das mais conceituadas revistas científicas de então. Pensem só que magnífico porvir! Uma vaca capaz de fotossíntese, dispensando pasto e ração e dando flores nos chifres. Um tomateiro sendo ordenhado no jardim de sua casa, dando leite quentinho. E quantos outros híbridos milagrosos não viriam em seguida?
Mas eis que a decepção veio no dia seguinte. A revista científica em questão fora publicada no dia 1º de Abril.
Pois não é que se anuncia agora uma hibridização ainda mais inconsistente, ainda mais grotesca que aquela que teria gerado o "boimate", a saber, a fusão da CLT com o regime do servidor público? E ainda estamos longe do 1º de Abril!
A mais evidente incompatibilidade genômica da hibridização proposta está na imposição de concursos públicos e regime CLT concomitantemente. A CLT significa ausência de estabilidade. O concurso público subentende a estabilidade. Ou muda-se a Constituição, ou fecha-se a Justiça do Trabalho. Mas, por outro lado, vai ser um maná para os advogados trabalhistas.
Ninguém duvida das boas intenções da administração federal ao enviar ao Congresso Nacional a proposta de criação de uma nova fórmula institucional, a Fundação Pública de Direito Privado. A iniciativa demonstra que o governo federal percebe que atividades diversas exigem organizações diversas.
Não podemos esperar que operem com eficiência ideal a tropa de elite e o Corpo de Baile do Teatro Municipal se a ambas organizações forem impostas as mesmas regras, a mesma disciplina e, enfim, o mesmo uniforme. O que seria uma blitz da valorosa tropa de elite ao som do "Lago dos Cisnes" de Tchaikovsky e com aquelas sapatilhas cor-de-rosa?
A vitaliciedade, isto é, a estabilidade irreparável, como é o caso do funcionalismo brasileiro, é fonte de ociosidade, irresponsabilidade e mediocrização. Em alguns casos, traz benefícios compensatórios. É o caso de policiais, juízes, fiscais, promotores etc., que, se pressionados, encontram na estabilidade um escudo eficiente.
Todavia, na grande maioria de funções públicas e paraestatais, a estabilidade protege apenas o medíocre e se constitui no maior obstáculo à qualidade e à eficiência. Essa característica se torna tanto mais saliente quanto mais intelectualmente intensa for a atividade.
Foi, pois, com o objetivo de promover a eficiência na produção intelectual que foi instituída, há pouco mais de dez anos, a fórmula "organização social" (OS). É uma organização civil sem fins lucrativos que firma com o governo um contrato dito "de gestão" estabelecendo objetivos e metas e cujo desempenho é periodicamente avaliado. Cada OS propõe seu próprio sistema de seleção, que o governo aceita ou não, e este último pode sempre interromper o contrato de gestão.
O Conselho de Administração da OS é civilmente responsável.
Essas condições resultam em eficiência e produtividade comparáveis às do setor privado. A legitimidade da fórmula foi recentemente testada graças a denúncias de inconstitucionalidade provenientes de dois partidos importantes e que foram rejeitadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Mas eis que ressurgem as cruzadas defensoras da mediocridade e da estabilidade vitalícia. Uma irmandade misericordiosa de deputados do PT pretende inserir na fórmula sofrível de criação das fundações híbridas a exigência de concursos públicos.
Outro franco ataque às organizações dessa natureza acaba de ser realizada pelo Ministério Público, o que reflete o conceito equivocado de que o bem-estar do indivíduo deve prevalecer sobre o interesse da sociedade, que é o que fundamenta a exigência da estabilidade.
Paradoxalmente esse preceito é uma característica do capitalismo, e não do socialismo. O profissional competente, meritório, não precisa desse tipo de proteção. E é engano pensar que o medíocre é apenas um peso morto, tolerável, inerte. Pois a experiência mostra que o medo da comparação com o competente e as exigências naturais de um meio ativo e comprometido com a qualidade geram militância e corporativismo adversos que terminam corrompendo o ambiente de trabalho e pervertendo os valores da instituição.


ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 76, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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