São Paulo, segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

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Porfiriato à vista?

ALMINO AFFONSO


Nada agride a concepção democrática de maneira mais corruptora do que o poder enfeixado nas mãos de um só contemplado


A VITÓRIA do presidente Hugo Chávez, pela terceira vez presidente da Venezuela, trouxe consigo o projeto de uma revisão constitucional que assegure o direito à reeleição sem norma limitadora.
Agora, ao assumir o mandato, com redobrada ênfase, a proposição foi reiterada. Se a hipótese se confirmar, receio que estejamos remontando à Constituição do México nas últimas décadas do século 19, que propiciou a Porfírio Diaz a permanência no poder ao longo de 35 anos consecutivos.
É verdade que não lhe podiam argüir uma ditadura formalizada. Mas, na prática, os mandatos reiterados tolhiam o princípio da renovação democrática, levando o país a um autoritarismo incontornável. Os historiadores, ao referirem-se a essa quadra obscurantista, costumam chamá-la de "porfiriato", a rigor tão asfixiante que, para superá-la, Francisco Madeira levantou-se em armas, liderando a revolução de 1910.
Como decorrência, a Constituição do México de 1917 tornou para sempre inelegíveis os presidentes da República. A lógica do veto, apesar da radicalidade, é defensável: franqueada a porta das reeleições, os mandatários, valendo-se dos mecanismos do poder, em nome de razões pretensamente nobres, nele se enlaçam tão envolventes como os cipós do apuizeiro. Depois, como cortá-lo sem recorrer à violência?
Os exemplos, embora em escalas diversas, multiplicam-se. Também Franklin Delano Roosevelt, invocando a crise social e os desafios da Segunda Guerra Mundial, reelegeu-se presidente dos Estados Unidos quatro vezes. A Constituição americana lhe permitia a ambição. Mas os "federalistas", seguramente, ao elaborá-la, não haviam imaginado que a brecha institucional pudesse ser usada e abusada. Não é, pois, sem razão que, após a morte de Roosevelt, tenha sido incorporada à Constituição a emenda nš 22, limitando a apenas uma vez o direito à reeleição.
Até entre nós houve um fato similar. A Constituição do Rio Grande do Sul de 1891, amparando-se no exercício de sua autonomia federativa, assegurava o direito à reeleição para a presidência do Estado. Navegando nessas águas, Borges Medeiros foi reeleito cinco vezes, até ser deposto pela revolução de 1923, comandada por Assis Brasil. Não me estendo por ser desnecessário. Mas vale lembrar que, não por acaso, nossos doutrinadores, em 1891, sempre defenderam a tese de um mandato de curta duração e a vedação à reeleição.
Para Thomas Jefferson, a reelegibilidade ilimitada equivale à vitaliciedade. A despeito do próprio mandatário, criam-se interesses que em torno dele se consolidam e forçosamente tratam de mantê-lo -até porque, uma vez apeado, vão-se com ele os beneficiários de seu poder. É uma casta que se forma e que se expande a todos os níveis. A rigor, todos se transformam em comensais da mesa farta.
Sou um intransigente defensor da renovação dos atores que encarnam o poder. Nada agride a concepção democrática de maneira mais corruptora do que o poder enfeixado nas mãos de um só contemplado.
Por isso mesmo, há alguns anos, quando o Congresso votou emenda à Constituição Federal instituindo o direito à reeleição do presidente da República, a ela me opus, no exercício do mandato de Deputado Federal, com justificada intransigência.
Dou nova dimensão ao que pensava: se o direito à reeleição, limitado a uma vez, empobrece a vida democrática, alimenta a corrupção, subordina a administração pública ao continuísmo, a reeleição, como um direito ilimitado, leva de modo inevitável à ditadura -com ou sem disfarces.
O presidente Hugo Chávez, em seu discurso de posse, assumiu o compromisso de implantar o socialismo na pátria de Simón Bolívar. Aplaudo a força com que renova a utopia de minha geração. Mas não vejo por que limitar a prática democrática, sufocando a ascensão de outras lideranças que venham com ele a dar continuidade à semeadura de sua mensagem.
Guardo a lembrança das lições de Salvador Allende, que, devotado à transição socialista no Chile, sustentou a via pluralista e respeitou as instituições democráticas como alicerces da sociedade que emergia.
Tomara que o Chávez, ao lado da audácia que o caracteriza, tenha sempre a sabedoria a limitá-la.

ALMINO AFFONSO , 77, é advogado. Foi deputado federal pelo PSB-SP, ministro do Trabalho e da Previdência Social (governo João Goulart) e vice-governador do Estado de São Paulo (1983-85).


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