São Paulo, quinta-feira, 15 de março de 2001

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OTAVIO FRIAS FILHO

Banalidade do mal

"Eichmann em Jerusalém" é um dos livros mais famosos do século. A base do ensaio é a cobertura jornalística, que Hannah Arendt fez para a revista "New Yorker", do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, sequestrado na Argentina pelo exército israelense e levado ao banco dos réus em 1961.
Eichmann foi um dos responsáveis pela chamada "solução final", a decisão de extermínio meticuloso dos judeus que Hitler adotara em meio da guerra. Instalado na cidade sagrada para três civilizações, o julgamento era o mais rumoroso no gênero desde o de Nuremberg (1945), que condenara os principais carrascos.
Mas o homem que apareceu no banco dos réus perante os juízes, as testemunhas e o mundo não parecia o monstro do mal, uma extensão, talvez piorada pela mediocridade, de Hitler. Era um homem de óculos e gravata de funcionário, sujeito que qualquer vizinhança tomaria por chefe de família zeloso de seus deveres.
Ele alegou, claro, que cumpria ordens superiores, irrecusáveis dadas as circunstâncias etc. Mas o que era mais chocante, e Hannah Arendt soube fixar em seu ensaio, é que a "neutralidade" administrativa do relato sobre como deportou seu rebanho humano deslocava o mal de seu lugar de costume.
Seja como obra do demônio, desastre da natureza ou sequela psicológica, a presença do mal entre os homens sempre foi vista como aparição individual. A demonização da figura de Hitler, que ele certamente bem merece, corresponde a essa tendência habitual do pensamento, que o ensaio, porém, subverte.
Aqui, o mal se dissipa numa estrutura compartimentada e impessoal onde a crueldade, multiplicada pela eficiência, funciona em regime taylorista. A culpa é compartilhada, assim, mas ao mesmo tempo se esvai ao longo de uma rede de conexões, obediências devidas, hábitos adquiridos, insensibilidade burocrática.
O livro de Hannah Arendt já é um clássico da reflexão política, mas o leitor fica se perguntando se as conclusões seriam as mesmas se o objeto do estudo não fosse um funcionário de terceiro ou quarto escalão, que tudo via com olhos de funcionário e que não tomaria parte num genocídio exceto como funcionário.
A crítica tem discutido o filme do cineasta russo Alexander Sokurov, "Moloch" (1999), que coloca uma lupa sobre um fim-de-semana qualquer que Hitler, Eva Braun, Goebbels, Bormann e suas respectivas mulheres passam no refúgio que o ditador mantinha nas montanhas, numa atmosfera onírica e perturbadora.
O filme oscila entre o "mal absoluto" e a "banalidade do mal", tracionado por ambos as interpretações sobre o que existe de insondável no nazismo. É uma autópsia, assim, de como o monstruoso e o prosaico podem se entrelaçar nas combinações mais delirantes. Não sendo um grande filme, ajuda a pensar.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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