São Paulo, quinta-feira, 15 de março de 2007

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Nada nasce do nada

A morte pungente do menino assassinado enlutou o país.
Depois vieram os "eu acho, creio, desejo", e a celeuma sobre sensibilidade e razão, foro íntimo e cargo público. Cabe reajustar o foco: a opinião requer saber e juízo para além do fato imediato e da interioridade particular.
Vencidas essas fronteiras, o pesar pela criança dilacerada pode, a partir da imagem do horror e por via de reflexão, abrir sendas para conhecer os estigmas da violência diuturna. Para tanto, carece "lembrar": fazer emergir do esquecimento a gênese, as práticas e o ideário legitimador do nosso mundo, anteriores à memória pessoal.
Seu advento, na Inglaterra, traça o modelo de sistema político e produtivo em que é endógena a massa de trabalhadores excedentes, os pobres e "vadios" criminalizados e reprimidos. J. Locke perfaz o ideário exemplar de sua dominação.
Essa ordem socioeconômica move-se conforme seu princípio -o lucro-, tendente ao infinito. Mudam-se os tempos, mas as vontades seguem fiéis ao acúmulo de seres sem face humana: hoje, o circuito financeiro e sua aceleração monopolizam recursos, debilitam a sociedade e devastam a pessoa, em escala mundial.
Migrantes, desempregados, indigentes, em parte suprem os setores ultramodernos que os escravizam. Mas o negócio atraente para jovens e crianças, sobretudo pobres, é o crime. Drogas, armas, roubo, guerras, consumo e imitação "fashion" instigam a degradação (A. Zaluar).
A cultura túrgida de violência (privada e estatal) produz um "etos", segunda natureza que exalta e rotiniza a danação. O livre-arbítrio, timbre da pessoa humana, é fraturado pelo automatismo: a escolha chega a ser entre morte (por carência) e morte (por crime). É nesse campo de paixões, usos e costumes, valores e juízos que urge intervir, mudar os laços vitais.
Compreender não é consentir. Lei e justiça devem cercear criminosos, mas a repressão é paliativa; a cura está em romper a brutalidade: criado como fera, o jovem torna-se bestial. Recurso mais completo seria zerar o comércio de crimes contra a humanidade, vencer os traficantes de armas e mercenários, férteis em extermínio e desolação.
Memento dos mortos-vivos, na triste liturgia da Unicef: a imagem da mulher esquálida, amamentando o bebê defunto, abre o portal do inferno; crianças com Aids, às quais resta pedir agonia serena; outras mortas de fome e devoradas por insetos; meninas e meninos vitimados por estupro, tortura e chacina; jovens acorrentados ao trabalho, mutilados em represálias, queimados vivos, escravizados em massa, raptados para a guerra e compelidos à impiedosa malvadez.
Nosso luto pela infância perdida não é impar.


sylvia.franco@uol.com.br

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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