|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Nada nasce do nada
A morte pungente do menino
assassinado enlutou o país.
Depois vieram os "eu acho,
creio, desejo", e a celeuma sobre
sensibilidade e razão, foro íntimo e
cargo público. Cabe reajustar o foco: a opinião requer saber e juízo
para além do fato imediato e da interioridade particular.
Vencidas essas fronteiras, o pesar pela criança dilacerada pode, a
partir da imagem do horror e por
via de reflexão, abrir sendas para
conhecer os estigmas da violência
diuturna. Para tanto, carece "lembrar": fazer emergir do esquecimento a gênese, as práticas e o
ideário legitimador do nosso mundo, anteriores à memória pessoal.
Seu advento, na Inglaterra, traça
o modelo de sistema político e produtivo em que é endógena a massa
de trabalhadores excedentes, os
pobres e "vadios" criminalizados e
reprimidos. J. Locke perfaz o ideário exemplar de sua dominação.
Essa ordem socioeconômica move-se conforme seu princípio -o
lucro-, tendente ao infinito. Mudam-se os tempos, mas as vontades
seguem fiéis ao acúmulo de seres
sem face humana: hoje, o circuito
financeiro e sua aceleração monopolizam recursos, debilitam a sociedade e devastam a pessoa, em
escala mundial.
Migrantes, desempregados, indigentes, em parte suprem os setores
ultramodernos que os escravizam.
Mas o negócio atraente para jovens
e crianças, sobretudo pobres, é o
crime. Drogas, armas, roubo, guerras, consumo e imitação "fashion"
instigam a degradação (A. Zaluar).
A cultura túrgida de violência
(privada e estatal) produz um
"etos", segunda natureza que exalta e rotiniza a danação. O livre-arbítrio, timbre da pessoa humana, é
fraturado pelo automatismo: a escolha chega a ser entre morte (por
carência) e morte (por crime). É
nesse campo de paixões, usos e costumes, valores e juízos que urge intervir, mudar os laços vitais.
Compreender não é consentir. Lei e justiça devem cercear criminosos,
mas a repressão é paliativa; a cura
está em romper a brutalidade: criado como fera, o jovem torna-se
bestial. Recurso mais completo seria zerar o comércio de crimes contra a humanidade, vencer os traficantes de armas e mercenários,
férteis em extermínio e desolação.
Memento dos mortos-vivos, na
triste liturgia da Unicef: a imagem
da mulher esquálida, amamentando o bebê defunto, abre o portal do
inferno; crianças com Aids, às
quais resta pedir agonia serena; outras mortas de fome e devoradas
por insetos; meninas e meninos vitimados por estupro, tortura e chacina; jovens acorrentados ao trabalho, mutilados em represálias,
queimados vivos, escravizados em
massa, raptados para a guerra e
compelidos à impiedosa malvadez.
Nosso luto pela infância perdida
não é impar.
sylvia.franco@uol.com.br
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Pecado capital Próximo Texto: Frases
Índice
|