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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Evangelho atribuído a Judas terá
impacto no futuro do cristianismo?
NÃO
Sensacionalismo passageiro, realidade perene
JOÃO BATISTA LIBANIO
O cristianismo é uma realidade
histórica de 2.000 anos que se vem
construindo, em perspectiva sociocultural, por duas forças convergentes: a
tradição e a cultura do momento. Sob o
prisma da fé, nesse jogo humano, acredita-se na atuação do espírito de Deus,
garantindo-lhe fidelidade.
O Evangelho de Judas não atinge em
profundidade nem o momento atual
nem as origens da tradição cristã. Portanto, não vai impactar no cristianismo.
Sua descoberta e o lançamento ao grande público pertencem antes ao sensacionalismo mercadológico, e não garantem nenhuma relevância teológica.
Para a cultura atual, tal documento
apenas interessará aos especialistas em
egiptologia, em língua copta ou em
gnosticismo. Rincões freqüentados por
especialistas. E para a tradição cristã? E
para o imaginário religioso popular?
Nova interpretação da figura de Judas
influenciará a compreensão desse apóstolo traidor e de Jesus? Creio que não.
Será mais uma das infinitas informações jornalísticas que nos assediam todos os dias e que passam com a velocidade das notícias sensacionalistas.
A questão se põe mais seriamente para a compreensão dos escritos do Novo
Testamento. Nesse caso, a influência do
Evangelho de Judas será de modo indireto e não afetará a compreensão da
pessoa de Jesus nalgum elemento fundamental para a fé.
Desde o início, as comunidades se defrontaram com a pluralidade de escritos
sobre Jesus, já que ele mesmo não escreveu nada. Nos anos seguintes a sua
morte, redatores de comunidades cristãs recolhiam testemunhos oculares,
pregações de discípulos, tradições orais
que se iam escrevendo em diversos gêneros literários e elaboraram relatos
mais longos e estruturados, que são os
evangelhos. Os documentos escritos
mais antigos testemunhando a missão
cristã são algumas cartas de Paulo.
As comunidades cristãs, no início, se
defrontaram com a produção de muitos
textos sobre Jesus. Procederam a um
trabalho difícil, lento e firme de selecionar aqueles que elas julgavam corresponder à autêntica fé. Chamamos tais
escritos de canônicos. E, por sua vez, rejeitavam aqueles que a contrariavam.
São os evangelhos apócrifos, entre eles,
esse que se acaba de descobrir.
Com efeito, desde o século 2º, temos
listas dos livros aceitos pelas comunidades cristãs. Isso se fez por causa da proliferação de escritos espúrios, mirabolantes sobre a vida de Jesus a partir da metade daquele século. Vários concílios do
século 4º em diante tomaram decisões
sobre a lista dos livros autenticamente
revelados.
Os numerosos evangelhos apócrifos,
quer os já conhecidos, quer algum que
eventualmente se venha a descobrir,
por serem apócrifos, não alteram o dado básico da fé. O atual texto canônico
da escritura está aberto a ser aperfeiçoado com a descoberta de manuscritos
dos primeiros séculos que atestam melhor versão. Textos apócrifos ou dados
culturais da época de Jesus ajudam a situar melhor o contexto da redação dos
textos canônicos. Assim, o Evangelho
de Judas, de origem gnóstica, permitirá
aos estudiosos entender melhor a reação das comunidades cristãs na sua já
conhecida luta contra o gnosticismo.
Conhecê-lo tem importância para entender por que ele provocou uma reflexão reativa por parte dos cristãos.
A gnose apresentava-se como ensinamentos esotéricos que conduziam os
iniciados à salvação pelo conhecimento
das grandes verdades religiosas, ou êxtase. Refletiam uma rejeição das realidades materiais ou carnais, vinculadas ao
mal, a um outro princípio criador divino. No desprezo pela matéria, propunham uma espiritualização e intelectualização da salvação.
São João, no Evangelho e na primeira
carta, oferece elementos que podem ser
interpretados como contraposição aos
gnósticos. A verdadeira gnose do cristão é a fé na revelação de Deus por e em
Jesus. E Jesus é o Verbo que veio na forma de carne, e não espiritualmente. Não
é se livrando do corpo que Jesus nos salva, mas morrendo e ressuscitando. A
salvação não se faz pelo conhecimento,
especialmente esotérico (gnose), mas
pelo sangue de Cristo. Há identidade
entre o Cristo crucificado e ressuscitado. A insistência antignóstica da tradição cristã do início, valorizando o corpo
de Cristo na vida terrestre e depois de
glorificado, é dado essencial da fé que
não será abalado por nenhuma descoberta gnóstica. No Evangelho de Judas,
Jesus pede-lhe que o liberte do corpo.
Passados, portanto, o sensacionalismo da publicidade e os jogos de mercado, voltaremos às águas tranqüilas de
uma fé no Jesus histórico, interpretado
pelas comunidades cristãs à luz da ressurreição. Dado inabalável e fundamental do cristianismo, que sofre muito
mais o impacto da cultura atual que o de
tais descobertas peregrinas.
João Batista Libanio, 74, mestre e doutor em
teologia, é professor de teologia no Instituto
Santo Inácio, dos jesuítas, de Belo Horizonte. É
autor de "Eu Creio -Nós Cremos" (Loyola), entre outras obras.
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