São Paulo, domingo, 15 de abril de 2007

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A transnacionalização do ecobesteirol

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE


Só uma extrema eco-paranóia justificaria o temor de expulsão do cultivo de alimentos e fome desenfreada no Brasil


E AGORA até os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e Fidel Castro, de Cuba, engrossam as fileiras do besteirol contra o etanol.
Para Chávez, o etanol é concorrente do petróleo. Quanto maior for a oferta de álcool combustível no mercado, menor será o poder do monopólio do petróleo. E, neste particular, Chávez tem a parceria das grandes multinacionais do setor. Para Fidel, a questão é política. Jamais se manifestou contra o etanol brasileiro antes da viagem de Bush ao Brasil, pois sabe que uma sólida cooperação comercial resulta sempre em confraternização ideológica.
As investidas de parlamentares e da imprensa estrangeira também podem ser entendidas como emanada dos interesses lobistas dos setores agrícolas, americanos e europeus. As demais vertentes, embora apresentando os mesmos argumentos, só podem ser compreendidas como resultantes de um misto de profunda ignorância e oportunismo sensacionalista, eco-idiotas, eco-demagogos.
Vamos, pois, considerar alguns dos argumentos. A cana-de-açúcar é uma monocultura e, portanto, diabolicamente engendrada com o objetivo de exterminar com o romantismo heróico da agricultura familiar. Com a exceção do cultivo de hortaliças, não há em todo mundo cultura de importância econômica e social que não seja monocultura. Contrariamente ao que afirmam ecologistas de plantão, a humanidade pereceria sem ela.
A segunda linha de ataque dos eco-demagogos é o equivocado argumento do balanço energético do álcool, de acordo com o qual a energia consumida para produzir uma unidade de álcool seria maior que aquela contida nessa mesma quantidade.
De fato, isso é quase verdade para o etanol americano fermentado do milho, em que apenas 20% a mais do que aquela energia fóssil despendida são ganhos. No caso da cana brasileira, entretanto, a cada unidade de combustível fóssil despendida com a produção de álcool, 8 e meia unidades de combustível fóssil (gasolina) deixarão de ser queimados. Não há nada tão benéfico para o meio ambiente, portanto, como a produção de etanol de cana-de-açúcar, quando a preocupação é com o aquecimento global e não com estratégias de autopromoção.
A terceira linha se refere a prejuízos ambientais locais. O plantio da cana degradaria o solo. Ora, as terras mais férteis do globo são aquelas cultivadas há séculos. Os poucos exemplos de degradação de solos por exploração agrícola se devem a abusos devido à ignorância ou à ganância.
Hoje não há no Brasil um litro de vinhoto vertido em rios ou mananciais e a queima de palha, já reduzida em 30% em São Paulo será, pois, por lei e por evolução tecnológica natural, extinta com a mecanização da lavoura. Simplesmente porque essa tecnologia torna mais rentável a produção do etanol, além de remover o estigma de trabalho desumano.
E a quarta crítica que se faz contra o etanol é que a cultura de cana-de-açúcar expulsaria as culturas de alimentos e, como conseqüência, haveria fome nas classes menos privilegiadas. Ora, historicamente o que causou fome ou miséria quase que nunca foi preço ou escassez de alimentos, mas desemprego e baixos salários.
Uma expansão da produção do etanol só pode gerar emprego e aumentar salários. Lembrando que a atual produção de 17 bilhões de litros de álcool ocupa só 3 milhões de hectares (outros 3 milhões para o açúcar) e que o Brasil, excluindo a área com atividade agrícola, toda área ocupada por floresta ou ambientalmente sensível, dispõe de 300 milhões de hectares de solo com qualidade e pluviometria adequadas para o cultivo da cana, podemos concluir que, multiplicando por dez a produção atual, não seriam ocupadas senão 10% das terras.
Com a adoção das melhores tecnologias já em uso ou em estado de desenvolvimento avançado, esse percentual pode ser reduzido para entre 3 e 5%. Com isso em vista, só uma extrema eco-paranóia justificaria o temor de expulsão do cultivo de alimentos e fome desenfreada no Brasil.
O sexto besteirol vem de uma estranha cadeia de pensamento que surgiu como reação a produção de carne bovina. Uma vaca consumiria entre sete e oito milhões de litros de água em sua vida. Ora, será que vaca não faz xixi? E será que este xixi não evapora como toda a água e neste processo se purifica ao retornar na forma de chuva?
O sofisma está na idéia de consumo da água. Água não se consome, ou melhor, só pode ser consumida em raras reações químicas. Se a água que a vaca bebeu tivesse só sido evaporada, ela voltaria na mesma medida que quando bebida pelo boi e passada pela forma de xixi. A mesma coisa ocorre com qualquer cultura agrícola. O maior cuidado que devemos ter é com a contaminação, o transporte pela água que usamos de substâncias indesejáveis ou nocivas para locais inadequados.
Mas eis que o meteorologista-mor da Argentina vem engrossar o cordão dos eco-demagodiotas. Ótimo. Se a Argentina é contra, é porque é bom para o Brasil.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE , 75, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.

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