São Paulo, terça-feira, 15 de abril de 2008

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Alimento à hipocrisia

Tom apocalíptico sobre carestia da comida é exagero; subsídios de países ricos dificultam revolução agrícola global

QUE INSTITUIÇÕES multilaterais, como as Nações Unidas, o FMI e o Banco Mundial, perdem importância não é segredo. O inusitado é que, agora, tentem compensar essa diminuição de peso relativo com uma gritaria apocalíptica em torno da inflação dos alimentos -e de sua relação com os biocombustíveis.
A fiar-se nas palavras de representantes dessas instituições, o mundo parece à beira de um cataclismo. Legiões de famélicos seriam produzidas a cada centavo de alta no preço das commodities; dezenas de conflitos seriam fomentados por causa da falta de comida. Nesse cenário, os biocombustíveis seriam mesmo "um crime contra a humanidade", como disse ontem o relator da ONU para o direito à alimentação, Jean Ziegler.
Há, evidentemente, um exagero estrondoso nesse tipo de avaliação. Ela perde de vista a hierarquia dos fatores que concorrem para a inflação no preço da comida, fenômeno mundial. A parcela de grãos ora utilizada para a produção de combustível, uma fronteira tecnológica no mundo rico, não tem escala para produzir, sozinha, elevação tão vultosa e abrangente no preço dos gêneros alimentícios.
O ganho contínuo de renda das populações mais pobres do mundo -na Ásia, na América Latina e na África-, as quebras de produção em países que são grandes exportadores agropastoris, a disparada no preço da energia e a especulação financeira contra o dólar são os fatores preponderantes para a inflação da comida. O uso crescente do milho, nos EUA, para a produção de álcool também ajuda no processo, mas de modo bem mais restrito.
Abortar investimentos em biocombustíveis, portanto, seria a terapia errada para ampliar em ritmo suficiente a oferta de alimentos. A abordagem correta seria liberar as forças produtivas agrícolas, em nível mundial, de constrangimentos que atravancam os ganhos de produtividade no setor. Leia-se: acabar com os subsídios a lavouras e rebanhos nas nações desenvolvidas.
Se esse imperativo vigorasse, países africanos miseráveis já teriam passado de importadores a exportadores de comida; uma revolução nas técnicas rudimentares adotadas em vastas regiões do mundo em desenvolvimento teria multiplicado o volume colhido e abatido; o biocombustível para complementar a demanda global por energia seria obtido em terras tropicais que hoje têm baixíssimo ou nenhum aproveitamento; todo o milho produzido nos Estados Unidos seria destinado à alimentação.
Os governos de países ricos de repente ficaram preocupados com o impacto da carestia alimentar na pobreza global. Que ajam, então, para resolver o problema e ponham um fim às barreiras agrícolas.


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