São Paulo, terça-feira, 15 de abril de 2008

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Cadeia não é catarse

ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO


O sigilo do processo é uma arma contra o investigado: divulga-se o que em tese incrimina e amordaça-se o exercício do contraditório


É QUASE impossível não acompanhar o andamento desse trágico assassinato da pequena Isabella.
Todo esse episódio merece algumas reflexões, até porque o Brasil é um país de catástrofes diárias. Infelizmente, estamos vivendo em um círculo de giz imaginário, em que o Estado policial e a exaltação da barbárie cada vez mais alijam os direitos individuais e as garantias constitucionais conseguidas a duras penas.
O medo substitui a segurança jurídica e a cadeia é apresentada como solução fácil para os problemas nacionais. O discurso do direito penal do terror ganha espaço e cada vez mais adeptos. O sigilo do processo é uma arma contra o investigado: divulga-se tudo o que em tese incrimina e amordaça-se a hipótese do exercício pleno do contraditório público e da ampla defesa.
Escrevo na condição de um dos milhões de brasileiros que acompanham o desenrolar da trama sem ter tido acesso a nada dos autos. Muitas são as circunstâncias que merecem ser comentadas.
Em primeiro lugar, a prisão. No Brasil, infelizmente, a prisão temporária, que, necessariamente, só poderia acontecer em situações excepcionais -pois a prisão é sempre uma exceção-, virou a regra. Há uma banalização da prisão. Ouvi o promotor de Justiça dizer na televisão que era necessária a prisão porque Alexandre Nardoni (o pai) e Anna Carolina Jatobá (a madrasta) poderiam voltar para casa e, em tese, ter contato com testemunhas importantes, influenciando-as.
Ora, em tese, todo investigado pode ter contato com testemunha. É necessário, para justificar a prisão, qualquer prisão, sob esse fundamento, que se aponte um fato concreto: no dia tal, às tantas horas, tentou influenciar fulano ou sicrano. Caso contrário, a prisão seria obrigatória.
Imagine se o investigado for um jornalista que tem influência em determinado jornal, ou um político que tem forte poder, ou, pior, um ministro do Supremo Tribunal Federal, que, em tese, detém fortíssima possibilidade de intimidar ou influenciar pessoas. Nesses casos, se investigados, teriam que necessariamente ser presos temporariamente, pois, em tese, teriam o poder evidente de influenciar. Tal paroxismo levou à ingênua, porém, profunda, observação de um jovem de dez anos que ao meu lado viu a prisão do casal pela televisão: "Espero que eles sejam culpados, caso contrário, se forem inocentes, essa prisão será a morte para eles".
Outro fato digno de reflexão é a divulgação que se deu da já famosa cena no supermercado: a família andando em perfeita harmonia passou a ser uma prova da inocência, da impossibilidade de serem, o pai e a madrasta, os responsáveis pela morte.
É de se indagar: tivesse aquela doce criança feito uma travessura, normal naquela idade -tal como puxar o cabelo do irmão ou mesmo abrir na hora errada um iogurte-, e a madrasta, no papel de educadora, chamado-lhe a atenção, até mesmo de dedo em riste, devido ao cansaço ou a uma irritação humanamente compreensível, seria esse vídeo prova de que ela matara a criança? Teria o país inteiro feito como fez uma delegada no momento da prisão e gritado: "assassina!".
São muitas as nuances que nos deixam perplexos. O pai não ligou primeiro para o socorro. Ligou para o pai dele. Tudo devidamente registrado, hora, minuto e segundo. Não é um pedido de socorro ligar para o pai? Será que todas as pessoas que estão vendo e acompanhando esses fatos sabem qual é o número da polícia ou do Corpo de Bombeiros?
Pode-se exigir de alguém que se depara com um filho, ou um irmão, ou algum ente amado em estado grave que siga um "manual de instrução sobre como agir em caso de perigo ou morte"?
E a ânsia de apontar contradições entre os depoimentos dos porteiros, vizinhos, amigos? Faço uma provocação: conversem determinado assunto em um grupo de oito pessoas e, daí a uma hora, peça às oito pessoas para descreverem a cena de uma hora atrás: lugar onde cada um sentava, roupa, forma de falar e o que cada um falou. Quase certamente veríamos oito prisões temporárias pelas contradições que se apresentariam.
Não quero com isso diminuir a importância de acompanhar passo a passo o desdobrar de fatos que chocam a todos nós. Mas é necessário que sejamos todos mais humanos, menos julgadores e possamos aprender com o poeta Leão de Formosa nessas horas: "Aperfeiçoa-te na arte de escutar, só quem ouviu o rio pode ouvir o mar".


ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO , 50, o Kakay, é advogado criminalista.

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