São Paulo, terça-feira, 15 de maio de 2007

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Lula e o Estado laico

ROSELI FISCHMANN

A identidade jurídica peculiar do Vaticano, a apresentar-se ora como Estado, ora como religião, facilita a tentativa de dupla ingerência

LULA CUMPRIMENTOU o papa com um aperto de mão, o que se esperava do presidente. Permitiu que nenhum cidadão se sentisse constrangido, como se visse o líder, eleito democraticamente, curvar-se ante a autoridade de outro Estado, de cunho teocrático. Por ser católico, seria fácil ceder ao beijo no anel. Separou o cargo público da escolha religiosa privada, mas houve quem apontasse quebra de protocolo e gafe. Impróprio não perceberem o político ciente dos gestos a sinalizar o que viria: a rejeição à proposta da Santa Sé, verbalizando decisão de fortalecer o Estado laico que é o Brasil, por força da Constituição Federal que jurou defender.
Como a Folha anunciou (e aqui tratamos em artigo de 14/11/2006), a proposta de acordo, tratado ou concordata feita pela Santa Sé volta-se para temas da soberania nacional: ensino religioso, relações trabalhistas, isenção fiscal, facilidades para entrada de missionários católicos em terras indígenas, aborto, pesquisa com células-tronco e eutanásia (as últimas na proposta de que o Brasil e o Vaticano comungariam dos mesmos valores de afirmação da vida em todas as suas fases).
A identidade jurídica peculiar do Vaticano, a apresentar-se ora como Estado, ora como religião, facilita a tentativa de dupla ingerência.
Sobre a soberania nacional, por trazer temas valorados por outro Estado -como a Santa Sé apresenta-se ao buscar o instrumento diplomático do acordo bilateral; e por tentar coibir toda queixa de ingerência, porque, assinado o acordo, teria havido adesão livre do Estado brasileiro a valores e propostas pelas mãos do presidente -ainda que longe do Parlamento e à revelia da sociedade.
Na faceta religiosa, haveria ingerência ao promover desigualdade no interior da cidadania, ameaçando o Estado laico. Ao considerar que um grupo religioso pode definir conteúdos legais, ignora os demais -outras religiões ou denominações, agnósticos ou ateus-, constrangidos ou excluídos da cidadania, gerando discórdia. A atender um grupo, o Estado acabaria por interferir na vida dos demais, violando a liberdade de crença assegurada pela Constituição.
Como é constitucional a separação entre Estado e religiões, o Estado não pode sofrer interferência das religiões nem interferir na vida delas.
A proposta de acordo induz a ferir o princípio da igualdade entre todos os cidadãos e a liberdade de associação, pois pretenderia impor, a toda a cidadania brasileira, valores e procedimentos ditados por um dado grupo e identificados com ele ou sua hierarquia interna. Atinge a liberdade de consciência e de crença: se quem adere a dada religião decide de livre consciência seguir este ou aquele ditame, é questão da sua privacidade; mas, se decide ditar como outros devem proceder, desrespeitando a consciência dos demais, assume o inaceitável quanto à ética e à ordem democrática.
São poderes de natureza distinta: o Estado é da ordem do humano, não do divino, sabe-se limitado e não infalível, não se prende a dogmas, mas à possibilidade da crítica e da evolução. Ao utilizar um "foi assim e sempre deve ser", pedindo que privilégios sejam reconhecidos como direito, a Santa Sé propõe que a dimensão do eterno invada a esfera pública, temporal e laica, e por isso sujeita à transformação democrática.
Aceitar esse acordo seria promover interferência mútua inconstitucional, em que as religiões também saem perdendo ao se submeterem à lógica do Estado. É em respeito à própria Igreja Católica no Brasil que Lula não deve assinar acordos com a Santa Sé.
Firmar acordos bilaterais é prerrogativa do presidente da República, e depois eles são aprovados ou não pelo Congresso. Em geral, esses acordos são voltados para temas comerciais, de interesse dos dois países envolvidos, nos quais a agilidade é importante, ou pedem sigilo em tempos de guerra para firmar a paz.
No que propõe a Santa Sé, não cabe negociação nem pressa, pois o interesse e ritmo de temas internos é o Brasil que deve ditar, nem cabe o sigilo, porque não se trata de guerra. Não pode o Executivo de um país democrático, sem guerra, negociar à sombra, por sobre a Constituição. Bem faz o Itamaraty em orientar o presidente a remeter os temas à legislação, nada havendo a justificar o sigilo. Qualquer acordo que coloque à disposição o patrimônio brasileiro, altere mecanismos tributários ou trabalhistas, submeta uma vez mais povos indígenas ou pretenda definir a formação de crianças e jovens brasileiros, a vida e como brasileiras e brasileiros devem usar seus corpos não pode ser tratado em sigilo: são temas do interesse de todos os cidadãos.
O papa voltou a Roma, mas deixou a ameaça da continuidade das pressões: a transparência é a única proteção para o presidente e para o Brasil.


ROSELI FISCHMANN, 53, doutora e livre-docente, é professora do programa de pós-graduação em educação da USP e expert da Unesco para a Coalizão de Cidades contra o Racismo, a Discriminação e a Xenofobia.

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