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Lula e o Estado laico
ROSELI FISCHMANN
A identidade jurídica peculiar do Vaticano, a apresentar-se ora como Estado, ora como religião, facilita a tentativa de dupla ingerência
LULA CUMPRIMENTOU o papa
com um aperto de mão, o que se
esperava do presidente. Permitiu
que nenhum cidadão se sentisse
constrangido, como se visse o líder,
eleito democraticamente, curvar-se
ante a autoridade de outro Estado, de
cunho teocrático. Por ser católico, seria fácil ceder ao beijo no anel. Separou o cargo público da escolha religiosa privada, mas houve quem apontasse quebra de protocolo e gafe. Impróprio não perceberem o político ciente
dos gestos a sinalizar o que viria: a rejeição à proposta da Santa Sé, verbalizando decisão de fortalecer o Estado
laico que é o Brasil, por força da Constituição Federal que jurou defender.
Como a Folha anunciou (e aqui
tratamos em artigo de 14/11/2006), a
proposta de acordo, tratado ou concordata feita pela Santa Sé volta-se
para temas da soberania nacional: ensino religioso, relações trabalhistas,
isenção fiscal, facilidades para entrada de missionários católicos em terras indígenas, aborto, pesquisa com
células-tronco e eutanásia (as últimas na proposta de que o Brasil e o
Vaticano comungariam dos mesmos
valores de afirmação da vida em todas
as suas fases).
A identidade jurídica peculiar do
Vaticano, a apresentar-se ora como
Estado, ora como religião, facilita a
tentativa de dupla ingerência.
Sobre a soberania nacional, por trazer temas valorados por outro Estado
-como a Santa Sé apresenta-se ao
buscar o instrumento diplomático do
acordo bilateral; e por tentar coibir
toda queixa de ingerência, porque, assinado o acordo, teria havido adesão
livre do Estado brasileiro a valores e
propostas pelas mãos do presidente
-ainda que longe do Parlamento e à
revelia da sociedade.
Na faceta religiosa, haveria ingerência ao promover desigualdade no
interior da cidadania, ameaçando o
Estado laico. Ao considerar que um
grupo religioso pode definir conteúdos legais, ignora os demais -outras
religiões ou denominações, agnósticos ou ateus-, constrangidos ou excluídos da cidadania, gerando discórdia. A atender um grupo, o Estado
acabaria por interferir na vida dos demais, violando a liberdade de crença
assegurada pela Constituição.
Como é constitucional a separação
entre Estado e religiões, o Estado não
pode sofrer interferência das religiões nem interferir na vida delas.
A proposta de acordo induz a ferir o
princípio da igualdade entre todos os
cidadãos e a liberdade de associação,
pois pretenderia impor, a toda a cidadania brasileira, valores e procedimentos ditados por um dado grupo e
identificados com ele ou sua hierarquia interna. Atinge a liberdade de
consciência e de crença: se quem adere a dada religião decide de livre consciência seguir este ou aquele ditame,
é questão da sua privacidade; mas, se
decide ditar como outros devem proceder, desrespeitando a consciência
dos demais, assume o inaceitável
quanto à ética e à ordem democrática.
São poderes de natureza distinta: o
Estado é da ordem do humano, não
do divino, sabe-se limitado e não infalível, não se prende a dogmas, mas à
possibilidade da crítica e da evolução.
Ao utilizar um "foi assim e sempre
deve ser", pedindo que privilégios sejam reconhecidos como direito, a
Santa Sé propõe que a dimensão do
eterno invada a esfera pública, temporal e laica, e por isso sujeita à transformação democrática.
Aceitar esse acordo seria promover
interferência mútua inconstitucional, em que as religiões também saem
perdendo ao se submeterem à lógica
do Estado. É em respeito à própria
Igreja Católica no Brasil que Lula não
deve assinar acordos com a Santa Sé.
Firmar acordos bilaterais é prerrogativa do presidente da República, e
depois eles são aprovados ou não pelo
Congresso. Em geral, esses acordos
são voltados para temas comerciais,
de interesse dos dois países envolvidos, nos quais a agilidade é importante, ou pedem sigilo em tempos de
guerra para firmar a paz.
No que propõe a Santa Sé, não cabe
negociação nem pressa, pois o interesse e ritmo de temas internos é o
Brasil que deve ditar, nem cabe o sigilo, porque não se trata de guerra. Não
pode o Executivo de um país democrático, sem guerra, negociar à sombra, por sobre a Constituição.
Bem faz o Itamaraty em orientar o
presidente a remeter os temas à legislação, nada havendo a justificar o sigilo. Qualquer acordo que coloque à
disposição o patrimônio brasileiro,
altere mecanismos tributários ou trabalhistas, submeta uma vez mais povos indígenas ou pretenda definir a
formação de crianças e jovens brasileiros, a vida e como brasileiras e brasileiros devem usar seus corpos não
pode ser tratado em sigilo: são temas
do interesse de todos os cidadãos.
O papa voltou a Roma, mas deixou
a ameaça da continuidade das pressões: a transparência é a única proteção para o presidente e para o Brasil.
ROSELI FISCHMANN, 53, doutora e livre-docente, é professora do programa de pós-graduação em educação da USP e expert da Unesco para a Coalizão de Cidades contra
o Racismo, a Discriminação e a Xenofobia.
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