São Paulo, terça-feira, 15 de junho de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

O que aconteceu com o neoliberalismo?

Escorraçado de quase toda a parte, o neoliberalismo refugiou-se no Brasil. Como doutrina para os outros -os subdesenvolvidos-, a proposta neoliberal sobrevive hoje em quatro redutos: economistas, formados nos Estados Unidos nas últimas décadas do século passado, que estudaram o desenvolvimento como mero campo de aplicação das idéias reinantes em economia; o setor do governo americano que ensina a outros países o que fazer, ajudado por seus agregados no FMI e no Banco Mundial; os meios financeiros de elite; e a imprensa internacional de negócios.
A essência da doutrina neoliberal foi e é a identificação arbitrária de uma idéia abstrata -a superioridade da economia de mercado- com uma fórmula institucional concreta -a necessidade, para os países atrasados, de adotar as instituições dos países ricos do Atlântico norte, sobretudo em sua vertente americana. A estabilização monetária e a prudência fiscal seriam meros precursores da indispensável convergência institucional. Daí a importância dada à agenda descrita como "microeconômica": por exemplo, organizar mercados de trabalho e de capital tão parecidos quanto possível com os mercados dos Estados Unidos. Caberia à política social a tarefa residual e compensatória de cuidar dos pobres, construindo "redes de proteção social".
O mundo repudiou esse ideário. Repudiou sem ainda ser capaz de demarcar, em termos universais, uma alternativa. Repudiou em favor de uma série de dissidências nacionais. Essas heresias que deram certo têm certos traços em comum: inovar na maneira de produzir e de organizar-se, resguardando, porém, a produção existente; associar o Estado com a iniciativa privada da forma mais descentralizada e menos corrupta possível para poder superar as inibições do atraso; e, uma vez acalentada a febre empreendedora, impor a ela duas disciplinas -a radicalização da concorrência e a democratização das oportunidades. Tudo muito mais parecido com o que os americanos fizeram em sua própria história do que é o neoliberalismo.
O projeto neoliberal malogrou na região que o adotou com mais fervor -a América Latina. Só o Chile -país pequeno, dependente de exportações primárias e pronto a praticar algumas heresias pontuais- escapou ao fracasso geral, embora à custa de desigualdade crescente. Fatal para os principais países latino-americanos foi a combinação de dois constrangimentos festejados como virtudes pelo neoliberalismo: deixar de mobilizar recursos nacionais que lhes permitissem não depender de dinheiro de fora e deixar de cultivar idéias rebeldes que lhes mostrassem como divergir da cartilha dos que querem mandar no mundo.
Aí está a história do Brasil de hoje -caldeirão reduzido a marasmo, governado no regime tucano-petista por gente que junta a covardia com a falta de imaginação. Para sair disso, é preciso mudar, ao mesmo tempo, o poder e as idéias. Quem disser que sabe como reunir hoje os recursos humanos, materiais e partidários exigidos por essa campanha transformadora estará mentindo. Ninguém ainda sabe como. Cada dia, entretanto, aumenta o número dos que procuram descobrir. Hoje, a vitória desses inconformados, ainda dispersos, pode parecer impossível. Não tardará o momento em que ela começará a parecer inevitável.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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